Por: Raull Santiago para a Folha de S. Paulo Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades
Entre os discursos de voltar ao normal e de novo normal, o que não pode permanecer é a hipocrisia, o silêncio e a não posição diante da história, do agora e do que se desenha para o futuro do nosso país. Falo das estruturas racistas e das atitudes que disseminam violência como política pública, para controle de corpos específicos, nos espaços sutil ou mesmo descaradamente demarcados, onde pessoas e seus direitos podem ser violados.
O novo normal, se é que isso existe, deveria ser de ouvir, de abrir espaço e aprender com os saberes das vivências ancestrais de favelas, periferias e povos originários. Aprender com quem literalmente salvou-se durante a pandemia global de Covid-19. Pessoas e lugares que são o centro do funcionamento da sociedade moderna, que diariamente ligam os interruptores dessa sociedade. Nós, que recebemos a sobrevivência como regra, e ainda assim desenvolvemos as tecnologias e os saberes que salvam vidas entre humanos, animais, meio ambiente e clima.
Em 2020, a favela como potência tem ainda mais força e significado. Enquanto, na contramão, ausência é o maior resumo do que foi o Estado nas questões humanitárias. Essas são as características desse momento histórico global. Informação, enfrentamento à fome e sede, estratégias de cuidados e muitas outras coisas foram feitas por nós de forma independente, enquanto as instâncias de poder nunca se faziam presentes.
O Brasil pode ser tão brutal, que essas ausências foram atravessadas pela presença violenta e óbvia, numa “guerra às drogas”, desse mesmo Estado racista. Enquanto o mundo tentava focar em isolamento social para reduzir as mortes pelo vírus, os assassinatos de pessoas negras continuavam, nas favelas e periferias, DE TIRO. Isso fez com que a população negra, historicamente massacrada nessa estrutura racista, ocupasse as ruas, com pandemia e tudo, com o máximo de segurança possível, mas ainda assim, expostas, para dizer que não aceitaria esse funil como regra.
Durante a pandemia ficou mais visível a linha do tempo da segurança pública, que não inclui moradores e moradoras de favelas e periferias como cidadãs plenas de direito à segurança, e que direciona para essas pessoas e seus territórios a brutalidade. Estão marcados na história esses reais significados.
Vocês ainda se lembram que em abril a violência da polícia aumentou 43% em relação ao mesmo período de 2019 —sem pandemia? E alguns dos vários crimes de maio, lembram? João Pedro, de 14 anos, no Complexo do Salgueiro. Iago Cesar de 21 anos, em Acari. Rodrigo Cerqueira de 19 anos, na Providência. Jovens mortos durante operações da polícia em diferentes favelas do Rio de Janeiro, durante a pandemia. E ainda teve uma chacina no Complexo do Alemão.
Através da nossa organização para denunciar o estado violador, fazendo avançar a importante ADPF 635, conseguimos um passo histórico para o país no campo dos direitos, que foi a proibição do uso de helicópteros pela polícia durante as operações policiais e a restrição imediata das operações durante a pandemia, trazendo como resultados imediatos a diminuição de crimes como homicídios, mostrando o quanto a letalidade policial é uma das questões gravíssimas desse país.
Os recentes confrontos entre facções criminosas, que também vitimaram pessoas inocentes, são consequência da ausência de garantias de direitos básicos nas histórias das favelas e periferias. A polícia, e sua violência como regra criou um ambiente volátil. Sabemos que só teremos avanços com investimentos em educação, saneamento, cultura e o fim da ideia de “guerra” como “segurança”. Estamos falando do estado onde a corrupção da polícia, ignorada na hipocrisia social, fortalece as milícias.
A sociedade precisa se movimentar agora. Sigam os nossos exemplos. Em meio ao caos atual, seguimos ensinando como construir uma sociedade mais justa e digna, mesmo sofrendo as consequências violentíssimas.
Me preocupo com o nosso hoje e os nossos amanhãs, onde só vemos o aprofundamento das desigualdades. Um país que poderia ser exemplo, agora desgovernado, mergulhado num caos que será difícil superar. E o Rio de Janeiro em si, com governo que ataca defensores e defensoras de direitos humanos, que fala abertamente das atrocidades que desejaria fazer com as favelas ou mesmo com um prefeito que parece não existir, a não ser quando monta sua “guarda”. Diante desse cenário, temos exatamente nas favelas e periferias os seus maiores e melhores exemplos de caminhos, sociedade.
Você está disposto a abrir mão do seu privilégio no novo normal? O Brasil é uma grande periferia rural, com metrópoles de favelas e pequenos quadrados de privilégio. Uns olham para nós, 14 milhões de pessoas, segundo o DataFavela. Pessoas que movimentam R$ 119 bilhões e veem uma “cidade partida”, apesar de estarmos costurando a cidade inteira, todos os dias. Então me diz: quem é você nisso tudo e o que você vai fazer?
Raull Santiago é jornalista, produtor cultural e de documentários, empreendedor social e ativista pelos direitos humanos e clima. Integrante do Coletivo Papo Reto, Agência Brecha e do PerifaConnection.