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‘É como uma droga’; pesquisa do Voz das Comunidades revela vício em apostas online de moradores do Complexo do Alemão

Segundo relatos, diversos moradores estão precisando arrumar um segundo emprego e pedir empréstimos para pagar dívidas de apostas online.
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Álcool, tabaco, drogas, apostas esportivas online… As famosas bets foram acrescentadas à longa lista de vícios que podem causar dependência, tolerância e até abstinência no usuário.

A palavra bet tem origem no termo em inglês – que vem do verbo to bet, que significa apostar – e foi assim que as apostas esportivas ficaram conhecidas no cenário online. Ao longo dos últimos anos, elas se popularizaram no Brasil, por serem muito acessíveis, principalmente somado a intensa divulgação na mídia, por meio de parcerias com influenciadores e patrocínios de grandes eventos.

E além das propagandas, o acesso às plataformas é muito fácil. Diferentemente de outras modalidades de jogos de apostas como loterias, as bets estão, literalmente, nas mãos dos apostadores, basta ter um celular em suas mãos. E com a fórmula da propaganda impactante com promessa de dinheiro fácil com um acesso a partir de um dispositivo acessível, o resultado não poderia ser outro: um número altíssimo de apostadores. Mas é dentro do círculo das apostas online que mora um grande perigo: o vício.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a compulsividade em um jogo age como uma doença na pessoa. A organização trata o vício do uso do celular ao lado da dependência do álcool, o que causa prejuízo para apostadores intensos. O vício acaba afetando a vida da pessoa, tanto no seu círculo social como também o profissional.

Apostadores no Complexo do Alemão

O Voz das Comunidades realizou uma pesquisa detalhada dentro do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, para investigar como as apostas online, conhecidas como “bets”, estão inseridas no cotidiano dos moradores da favela. Ao todo, 98 moradores das localidades da Grota e Nova Brasília responderam à pesquisa, permitindo um olhar profundo sobre o impacto desse hábito no dia a dia da comunidade.

Os dados levantados mostram que aproximadamente 53,1% dos entrevistados revelaram ter o hábito de realizar apostas online, enquanto 43,9% afirmaram que, apesar de não apostarem, conhecem amigos ou familiares que o fazem regularmente. Isso indica que, mesmo para aqueles que não participam diretamente, as apostas estão presentes em suas redes sociais e no ambiente ao redor. A maioria dos que admitem apostar relatou que acessa essas plataformas mais de três vezes por semana, gastando valores entre R$ 200 e R$ 1.000 mensais, o que evidencia o quanto as bets ocupam um espaço significativo nas finanças e na rotina de lazer desses moradores.

Além dos números, os depoimentos obtidos na pesquisa destacam a dimensão social e emocional do problema. Muitos entrevistados relataram experiências difíceis, revelando que alguns perderam praticamente todos os bens de dentro de casa devido ao vício em apostas online. Entre os relatos, há histórias de moradores que, em razão das perdas financeiras, precisaram buscar empregos extras para tentar cobrir os prejuízos. Além do impacto financeiro, muitos admitiram que sua saúde mental foi severamente afetada. A maioria expressou a dificuldade de abandonar o vício, ilustrando a complexidade da situação.

É o caso do padrasto da Kananda Ferreira, professora de 27 anos e moradora do Conjunto de Favelas da Maré. Ela contou com exclusividade ao Voz das Comunidades como a vida de sua mãe foi afetada desde que seu padrasto se envolveu com apostas online. “Percebemos durante a pandemia que ele não saia do celular e encontramos alguns ‘buracos’ na conta bancária da minha mãe. Quando comecei a desconfiar, passei a vigiar mais de perto e descobri que ele fez diversos empréstimos para alimentar o vício de apostas online, todos no nome da minha mãe. E ele não percebe que é um vício. Hoje, ela ainda está pagando por isso e vive no limite”, conta Kananda.

O que dizem os especialistas?

A falta do senso em perceber que o ato de apostar nas bets se tornou um vício, como a situação do padrasto de Kananda, é a realidade de diversos entrevistados do Complexo do Alemão. Eles também não reconheceram o hábito de apostar online como um vício. De acordo com a psicóloga e neuropsicóloga do Instituto Delete, Luisa Sabino Cunha, o principal desafio da psicologia é o reconhecimento de um problema de vício e isso se agrava na discussão das plataformas de apostas online. “A gente vive basicamente uma certa epidemia da questão das bets. Mas essa questão dos jogos, do jogo patológico, do jogo da vício a videogames, isso tudo já existia. A internet traz outras coisas. Ela traz vício à pornografia, vício a compras online… A gente sabe que as pessoas ficam viciadas e ficam muito presas nesse movimento inconsciente, onde a pessoa não consegue sair. E quando falamos da questão da tecnologia, em relação às plataformas, o design próprio do aplicativo, como isso é pensado, a gente sabe que isso tem um agravante muito grande”.

A psicóloga detalha que a pandemia da Covid-19, por conta do isolamento social, atingiu a sociedade como um todo, no que se refere à saúde mental. E foi aí que as plataformas de jogos adentraram na vida das pessoas. “Todos nós saímos de uma pandemia, então a gente sabe que os prejuízos no campo da saúde mental são muito grandes e ficamos submetidos a um processo de isolamento. A gente sabe que o isolamento impacta diretamente a saúde mental humana. Estar isolado é algo que não é da nossa convivência comum, sem acesso, sem poder se ver”.

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Falsa sensação de vitória

Ela também explica que todo ser humano tem dentro de seu cérebro um sistema de recompensa e as plataformas online entregam essa sensação quando o usuário atinge o seu objetivo. “O que acontece é que o nosso cérebro vai sempre buscar esse prazer. Quando a gente acessa alguma coisa que nos gera prazer, faz com que a gente busque constantemente também e o sujeito acaba voltando. Ele faz esse movimento de voltar naquilo que seria esse gerar prazer. É a liberação de dopamina, de serotonina, que são hormônios relacionados, no senso comum se chama hormônio da felicidade, do prazer, então a pessoa vive uma sensação de bem-estar”.

Perante as dificuldades da vida, para a psicóloga, o dispositivo eletrônico chega como uma espécie de fuga para um mundo que está na palma da mão. “Esse novo mundo está as suas mãos, né? E aí, especificamente, os jogos, eles têm capturado muito essa tensão, esse lugar de prazer. Eles sabem vender e capturar até pelo design. A ideia de ganhar, assim como a ideia de perder também mobiliza, né? E aí o sujeito, mano, não gosta de perder, então ele vai fazer de tudo para tentar recuperar aquilo e isso vai criando um ciclo vicioso e inconsciente”.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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