Por: Marcos Furtado para PerifaConnection, na Folha de S.Paulo
Um garoto de aproximadamente seis anos brincava de cabra cega com seus colegas de escola. Por estar com uma venda nos olhos, ele gritava e procurava os demais tateando no ar. A professora, que observava a turma, parou o aluno e disse cochichando: “Para de gritar desse jeito. Você está parecendo um ‘viadinho’ ”.
O choque da criança foi imediato e o tecido que cobria seus olhos foi umedecido pelas lágrimas. Hoje, com 29 anos, escrevo esta memória para questionar: como aceitar uma ideia de meritocracia em um sistema de ensino que reproduzir a exclusão?
O termo meritocracia é formado pela justaposição do substantivo mérito com o sufixo cracia (poder). Em outros termos, é a valorização das necessidades individuais.
O iluminismo utilizou essa ideologia para fazer desculpas à aristocracia. Com o objetivo de extinguir o nepotismo, característica essencial para a manutenção das vantagens aristocráticas, os burgueses buscavam a valorização do requisito de obrigação de qualquer origem ou classe social.
À medida que o modelo de meritocracia foi sendo absorvido e posto em prática pela sociedade, as suas anunciadas fragilidades se colocaram em evidência.
Em 1958, o sociólogo Michael Young menciona pela primeira vez o, até então, neologismo em seu livro “A ascensão da meritocracia” (O triunfo da meritocracia, em tradução livre). A leitura é uma sátira política à futurística Inglaterra, de 2033, onde o poder saiu das mãos de uma elite de nobreza hereditária para os detentores do “coeficiente intelectual”.
A obra literária diz que, nesse futuro, para cada homem com mérito há “dez medíocres”, que devem viver marginalizados e ocupar posição de servidão. Apesar das evidências críticas, a ideia se popularizou e se tornou o ideal das sociedades burguesas.
Distanciando-se do argumento religioso de sangue azul para justificar a diferença entre os nobres e os servos, uma meritocracia utiliza uma ideia racional da capacidade individual e de que todos têm as mesmas oportunidades.
Como consequência da exclusão nesta lógica, a sociedade cria tolerância à minoria com acúmulos de capital financeiro, profissional e moral contrastando com a maioria que fica com o resto desses recursos.
De acordo com o estudo “Um Elevador Social Quebrado? Como Promover a Mobilidade Social ”, o Brasil é o segundo país (empatado com a África do Sul) com o maior tempo para que as famílias pobres consigam mudar sua situação econômica.
A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) estima que são nove gerações para que descendentes de pais com menos poder aquisitivo atinjam a classe média.
Para definir as estratégias que justificam o poder dado à classe social dominante, o sociólogo francês Pierre Bourdieu criou o termo ‘racismo da inteligência’.
Desconsiderando os impactos das desigualdades sociais na formação de um indivíduo, o racismo da ordem da inteligência um estado de superioridade aos dominantes. Em outros termos, a certificação da inteligência toma o lugar dos antigos títulos da nobreza.
Se antes da era mérito condicionado a partir da origem familiar, agora são os diplomas que certificam quem pode ocupar espaços de privilégios.
Professores, grades curriculares e o sistema de avaliação estabelecem uma aliança meritocrática entre os privilegiados e o sistema de educação para que o poder se perpetue nas mesmas mãos. Essa teoria se comprova com as diferenças existentes entre os sistemas de educação público e o privado.
Com a escola sendo uma base da estrutura do racismo da inteligência e da aristocracia do mérito, os mesmos rostos e sobrenomes se repetem por gerações em locais de poder, como faculdades, redações de jornais e governo.
O professor Silvio Almeida diz em seu livro “Racismo Estrutural” que “a soma do racismo histórico e da meritocracia permite que a desigualdade racial vivenciada na forma de pobreza, desemprego e privação material seja entendida como falta de mérito do povo”.
Deltan Dallagnol, procurador da República que exerceu a operação Lava Jato, prestou concurso para o Ministério Público Federal em 2002, mesmo ano em que se formou no curso de direito pela Universidade Federal do Paraná. A sua participação era impossibilitada por uma lei que exigia pelo menos dois anos de experiência profissional.
Com a ajuda de seu pai, Agenor Dallagnol, procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Paraná, Deltan conseguiu se eximir de regra, condição que dificilmente seria oferecida a quem não tem parentes ou contatos pessoais em um órgão público.
Furar essa bolha é extremamente difícil. Há muitas empresas e consultorias que investem em diversidade e inclusão, mas que também convertem como desigualdades e o racismo estrutural em performances teatrais e lucrativas.
Até que ponto essa preocupação é apenas uma jogada de marketing que lá na frente vai jogar na nossa cara que nos deu as mesmas oportunidades? Até que ponto não estamos com a mesma venda que uso naquela brincadeira de cabra cega que me fez chorar? Até quando vamos tolerar o discurso da meritocracia?
Marcos Furtado
Jornalista, coordenador de Comunicação do PerifaConnection e autor da monografia “A Baixada Fluminense e o Mito da Meritocracia”
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo.