“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”.
A canção, lançada em 1994 e interpretada pela dupla Cidinho & Doca, foi umas das primeiras gravações oficiais do gênero funk carioca no início dos anos 90 e traz uma letra clara e objetiva, abordando temas como violência, racismo e desigualdades sociais no Brasil. Trinta anos depois, a canção continua sendo um claro retrato dos dias atuais das favelas. O tempo passou, a música se tornou um hino e nada mudou na realidade dos moradores de favela.
- 39 operações policiais;
- 90 invasões de domicílios;
- 17 mortes em ações policiais;
- 10 subtrações de pertences;
- 8 casos de cárcere privado;
- 13 casos de tortura;
- mais de 30 dias sem aulas nas escolas;
- 26 dias de serviços de saúde interrompidos.
Esses são os dados recolhidos de 2024 até o momento pela Redes da Maré, uma organização que tem como missão tecer as redes necessárias para efetivar os direitos da população do conjunto de 15 favelas da Maré, Zona Norte do Rio, onde residem mais de 140 mil pessoas.
Em entrevista ao Voz das Comunidade, Tainá Alvarenga, coordenadora do eixo direito à segurança pública e acesso à justiça da Redes da Maré, contou que apesar da organização trabalhar com o atendimento, o acolhimento e o encaminhamento das famílias em dias de operações, além do recolhimento desses dados in loco, eles também sentem o impacto diante das outras atividades que a Redes da Maré oferece.
“Em dias de operações policiais, os cursos preparatórios, cursos pré vestibulares são desmobilizados, além de outras atividades para os moradores, como alfabetização, cursos diversos, atividades nas bibliotecas, impactando mais de 500 alunos que circulam diariamente aqui na nossa instituição”.
Segundo dados divulgados pela Redes da Maré, até o fim do mês de setembro, a organização deixou de realizar cerca de 244 atividades, afetando o atendimento de, em média, 1.480 pessoas por operação. E tudo isso reflete diretamente no cotidiano do morador. Natália Paulo, de 35 anos e moradora do Conjunto de Favelas da Maré, contou que ela já tem uma rotina pré estabelecida de compromissos de trabalho e atividades dos filhos e essa rotina é constantemente alterada por conta das operações policiais. “Segunda é dia de ir para o meu curso, terça levo meu filho para o Boxe, quarta estou menos atarefada, mas na quinta preciso levar novamente meu filho para a aula de Boxe, na sexta preciso ir em uma consulta que eu estou esperando há tempos e por aí vai… Mas na verdade, como nem sempre conseguimos que de fato saia tudo como planejamos, levando em consideração que contratempos acontecem, o Estado de alguma maneira nos obriga a ter um plano B que na maioria das vezes se torna o plano A”.
Natália ainda conta que na casa dela, eles vivem pensando sempre no dia seguinte. “Na minha casa funciona assim: se hoje é domingo a noite, o que fazemos? Compramos o pão, o leite, a carne e até mesmo os cigarros do dia seguinte. E assim seguimos até o final da semana”. Ela também relata que por conta das constantes operações policiais perdeu diversos atendimentos médicos. “O Estado não vai colocar meus filhos no topo da lista do sisreg pq eu fui prejudicada pela operação. E são tantas outras oportunidades que se foram e não voltaram. E como eu vou olhar para o futuro diante de todas essas coisas? Eu sei que preciso lutar, porque já não se trata da Natália e sim do Fellype, Andrew, Arthur, Victorya, meus filhos”, lamenta a moradora.
Importância da pesquisa de dados
“O povo tem a força, precisa descobrir
se eles lá não fazem nada, faremos tudo aqui”
Parafraseando o hino de 3 décadas, Rap da Felicidade, a Redes da Maré também acredita que a mudança precisa acontecer de dentro para fora. Pensando nisso, esse trabalho de acolhimento, atendimento, acompanhamento das famílias vítimas de violência, de violações em dias de operações policiais, entre outras violências, bem como a sistematização desses dados, das evidências, faz com que ao longo do tempo a organização perceba, sobretudo pós ação civil pública que é possível conseguiu incidir nesses instrumentos jurídicos e que todo esse trabalho serve para capilarizar essa experiência em outras favelas do estado do Rio de Janeiro.
“Isso é muito importante. Esse ano a gente percebe que houve um aumento da letalidade, foram mais de 14 pessoas mortas em operações policiais. A gente teve 39 operações até o momento. Ano passado a gente fechou o ano com 34 operações policiais, então esse número é bem grande. A gente reconhece que sem esse trabalho de monitoramento, de acompanhamento e de contato com as instituições de acesso à justiça, tanto o Ministério Público como os nossos parceiros da Defensoria, esse número poderia ser muito maior e muito mais letal se esse trabalho não ocorresse, se não existisse” explica Tainá.
A coordenadora do eixo direito à segurança pública e acesso à justiça da Redes da Maré, conta que esses dados são públicos e que a organização publica esse trabalho visando a incidência política, a contranarrativa. “A gente abre o Jornal da Tarde, da noite, e muitas das vezes, as secretarias de polícia, os agentes, vão fazer narrativas de que as operações foram de sucesso. E quem está dentro do território vai ter aquela sensação de pós-destruição, pós-guerra, e ir tentando retomar a vida nesse sentido, de voltar o dia seguinte para a escola, ir para o trabalho, mas aí a gente verifica com esse acompanhamento e esse monitoramento e sistematização dessas informações em dias de operações policiais que ocorreram violações ao domicílio, violências verbais. Muitas das vezes as operações, em alguns casos, não vão acontecer mortes, mas vão acontecer diversas outras violações que vão impactar a vida do morador, incluindo o fechamento das instituições públicas de serviços, que são creches, escolas, postos de saúde, tudo isso vai se fechar”, conta Tainá.
Graças a esse processo de publicização e de acompanhamento ao longo do tempo, a instituição consegue mapear e alcançar a dimensão da violação, que muitas das vezes não vai ser narrada. “Então, se não tem morte, muitas das vezes o olhar do público não vai se voltar para esse território. E dependendo da morte, nem sempre vai ter essa visibilidade. Então ter esses dados publicados, apoiando iniciativas de incidência política, relatórios, a gente consegue, com parcerias, incidir em processos mais amplos. Então essa é a grande importância desse tratamento. O grande valor desse trabalho”, conta Tainá.
Com a divulgação desses dados, Natália. moradora da Maré, desabafa, “prefiro olhar com esperança, esperança de que o cenário de hoje não pode ser o fim”. Esse é o desejo de Natália e tantos outros moradores de favelas que ainda deixam o grito da canção ecoar de suas gargantas “eu só quero é ser feliz, morar tranquilamente na favela onde eu nasci”.