“Da minha janela, vejo o céu estrelado e um castelo iluminado. Vejo muitas lajes e telhados remendados. É gente para todo lado. Quando está muito calor, algumas pessoas trazem o mar para as suas casas e o dia fica mais fresco”. Esse trecho faz parte do livro infantil “Da Minha Janela”, do livreiro Otávio Junior e já foi lido por muitos pequenos do Complexo do Alemão. Parece que Otávio adivinhou como as crianças estariam no período de quarentena: observando a rua de longe.
Especialmente os alunos da Creche Estrelinha, também participantes do Clube de Leitura Infantil Rosângela Marinho. Neste período sem aulas, eles podem treinar a leitura enquanto se identificam com as histórias que estão lendo. Uma experiência que estimula desde a infância o valor do pertencimento que é ser um morador de favela.
No cenário em que, o Complexo do Alemão é um dos bairros do Rio de Janeiro com mais crianças e jovens sem estudar, segundo o Censo do IBGE (2000), sempre foi uma preocupação unir cuidado e educação. Tanto para a professora e dona da Creche Rosângela Marinho quanto para sua filha Carolina Marinho, jornalista e idealizadora do Clube Literário. Com mais de 30 anos de história, a Creche Estrelinha atende 150 crianças de 0 aos 6 anos. Seus serviços não se resumem a educação e ao cuidado, mas ao letramento, trabalho social e voluntariado. Carolina Marinho garante que, sempre tiveram uma proposta pedagógica do espaço para alfabetização das crianças na idade adequada que é a primeira infância.
Cesta básica de conhecimento
Diante da pandemia e das aulas suspensas, foi um desafio encontrar caminhos para isso. “Na quarentena, a gente não aderiu à educação a distância porque muitas das nossas mães não têm acesso regular à internet e a energia elétrica, imagina como seria acompanhar um conteúdo online. Isso é pensar em uma educação inclusiva que abrange a todos”, diz a jornalista Carolina Marinho, voluntária da Creche e idealizadora do Clube de Leitura.
Desde o começo da pandemia até o mês de setembro, mais de 600 cestas básicas foram distribuídas para 100 famílias em situação de vulnerabilidade social, boa parte alunos da Estrelinha. A iniciativa pretende se estender até dezembro de 2020. A alternativa encontrada foi trazer conhecimento para dentro das cestas. “A gente entende o desenvolvimento humano como integral. Não adianta alimentar o corpo, também precisamos alimentar o espírito e a intelectualidade”.
Em busca de parcerias, o livreiro Otávio, cria da Penha e autor negro de livros infantis, emprestou os primeiros 100 livros para o projeto. Logo se tornou o curador do Clube de Leitura Infantil Rosângela Marinho, nome escolhido pelas mães dos alunos em homenagem à fundadora. Hoje, eles têm seu próprio acervo e a curadoria faz toda a diferença: Traz a representatividade geográfica, com histórias locais e também a maioria das histórias têm personagens negros, trazendo a questão racial para consciência dos pequenos.
Em cada cesta entregue, vai também um livro infantil, legumes, verduras e fraldas. Cerca de 55 crianças com mais de quatro anos recebem o presente surpresa. Aquelas abaixo desta idade, ganham livros de colorir. Quem está vendo mudança em casa é Gisele Aparecida, moradora da Fazendinha no Alemão e mãe da pequena Gabi de 8 anos, aluna da creche. Sua relação com a Creche Estrelinha é de longa data: é amiga de Rosângela tem mais de 20 anos e sua primeira filha foi cuidada ali desde seus primeiros meses. “Sempre que eu preciso que a Gabi fique lá em dias diferentes, é o lugar que sei que tem pessoas de confiança e com um valor acessível”.
Além da parceria que percorre o tempo, Gisele se surpreendeu com a atitude da Creche em plena pandemia. “A Estrelinha ajudou as famílias com alimentação, eu passei aperto mas não foi necessário. Sei que tem mãe com várias crianças, então pedi que ela cedesse a minha cesta para quem precisava mais. Até hoje eles continuam com esse trabalho incrível”, conta.
Sobre a iniciativa de leitura, ela afirma que é um apoio fundamental. “Eu achei um máximo. Eu pego os livrinhos para a Gabi e é muito bom. Sempre falo com as minhas filhas que a leitura abre horizontes, dá mais criatividade e mais noção das palavras. A gente que é pobre financeiramente, o único meio que a gente tem de crescer é estudando, adquirindo conhecimento”.
Dia das Crianças cheio de história
A mobilização de incentivo à leitura se fortaleceu no mês das crianças e chegou até Alexandre Keto, artista plástico renomado de São Paulo. Ele fez a doação de 150 livros de colorir com o tema étnico-racial e caixas de lápis de cor. A obra é autoral e está disponível gratuitamente do site oficial do artista para download.
“Eu lancei dois livros de colorir no começo da pandemia para o lazer de baixo custo para crianças e jovens. A importância dessa ação é de contribuir para atividades educacionais para jovens no mundo inteiro, em um livro de colorir interativo, onde crianças podem se divertir e aprender mais sobre a importância e riqueza do continente africano”, conta Alexandre Keto.
A editora infantil Bombom Books também decidiu contribuir com presentes literários para os pequenos. Na Campanha, a cada venda de livro outro seria doado para o Clube de Leitura Infantil Rosângela Marinho. A meta foi alcançada e cerca de 30 livros foram doados. Mas assim como a quarentena, as mobilizações para receber doações não param.
Já são oito meses de dedicação e cuidado às crianças e suas famílias. Preocupação justificada: o Complexo do Alemão é o 4o território periférico com mais casos confirmados de coronavírus na cidade carioca. São 819 moradores infectados, de acordo com levantamento do Painel Unificador COVID-19 nas Favelas do Rio de Janeiro (01/11).