Escrito por: Melissa Canabrava e Lucas Feitoza
Em um Brasil onde 74,4% da população conhece alguém viciado em jogos, a história de Valeska, uma jovem de 20 anos moradora do Complexo do Alemão, destaca desafios e realidades enfrentados por muitos. Na pesquisa recente da Zoox Smart Data (que ouviu quase 22 mil brasileiros), ficou evidente que a questão das apostas não é apenas estatísticas, é uma luta pessoal que pode devastar vidas.
Valeska começou a apostar na curiosidade, influenciada por amigos. “Vi pessoas jogando, me interessei e, quando percebi, já estava viciada”, conta, ao lembrar como um simples entretenimento se transformou em um fardo pesado que carrega há mais de dois anos. Para ela, o controle sobre os gastos desapareceu rapidamente. “Se eu tiver 100 reais, vou jogar tudo. Isso é o problema”, revela, com tom de preocupação.
O vício afeta profundamente suas relações familiares. “Minha mãe briga comigo sempre, mas eu continuo jogando”, desabafa a jovem, evidenciando a tensão que cerca sua vida. O espaço familiar que deveria ser de apoio se tornou um campo de conflito, onde a compreensão e a aceitação estão em falta.
Valeska também destaca que, embora ainda não tenha procurado ajuda profissional, sabe que o caminho é difícil. “Não entrem nesse vício, nem testem para ver se é bom, porque depois que entra, é muito difícil sair”, alerta. Sua experiência serve como um aviso a todos, especialmente aos jovens que podem se sentir atraídos pela adrenalina das apostas.
Dívida de jogo
Além da realidade de jovens como Valeska, outro dado preocupante é o valor gasto por idosos nas apostas. O Banco Central aponta que as pessoas acima dos 60 anos gastam aproximadamente R$3 mil em apostas. Para o economista Hudson Bessa, sócio da HB Escola de Negócios, “o idoso é mais vulnerável, porque ele acredita em promessas de ganhos mais fáceis e, às vezes, pelo tempo sobrando e desesperança”, pontua.
Segundo pesquisa realizada pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (que ouviu mais de 1.300 pessoas), 63% dos apostadores online dizem terem comprometido parte da renda com apostas. Nesse cenário, as bets (empresas das apostas) se beneficiam por dois lados: a sensação de urgência por dinheiro e a paixão dos brasileiros por futebol, o que favorece ainda mais a dinâmica de apostar por impulso.
A Associação Americana de Psiquiatria revela que as principais causas para apostar são a necessidade de escapismo da realidade e a ilusão de controle, atribuindo o sucesso a si e a perda ao acaso. Além disso, a maneira “fácil” de ganhar dinheiro, que faz alguns acreditarem que podem ter lucros como se os jogos fossem investimentos; e a perseguição de perdas, que acontece logo após não vencer o jogo, são outras causas desse vício.
Heróis conhecidos
Especialista em economia e coordenadora do curso Valor de Jornalismo Econômico, a jornalista Ligia Guimarães analisa que a falta de educação financeira dos brasileiros somada à desinformação abre brechas para o endividamento. A especialista defende que para combater isso é importante que as pessoas estejam informadas sobre os riscos das apostas online: “quanto mais empoderada com informação, sabendo como lidar com o dinheiro, mais as pessoas ficam fortes contra os estímulos das bets”, finaliza.
O Banco Central aponta que usuários do Bolsa Família depositaram nas plataformas de apostas, em agosto, cerca de R$3 bilhões em PIX. Esse valor saiu do bolso de 5 milhões de beneficiários. Agora o Ministério do Desenvolvimento Social pretende bloquear as transferências para as casas de apostas com o objetivo de manter as quantias em sua finalidade inicial projetada: de segurança alimentar.
O economista Hudson Bessa, também professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV) , aponta a necessidade de uma adaptação da educação pública de maneira a incluir a educação financeira nas escolas. Considera também a necessidade de preparar professores para abordar o tema, já que este está em defasagem na Educação.
“O que a gente tem que fazer as pessoas entenderem é que não existe ganhos infinitos sem risco. Alguém demonstrar que está muito bem nas redes sociais não significa que ela ganhou aquilo no jogo”.
Década das Bets
Desde 2018, as apostas em eventos esportivos foram legalizadas pela Lei Federal 13.756. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, entretanto, não houve movimentação para regulamentação das apostas esportivas de quota fixa, ou seja, as que definem um valor que o apostador pode ganhar caso acerte um palpite. O que abre brecha para a popularização e surgimento de sites fraudulentos.
Aliado a isso, as publicidades cada vez mais presentes nas redes sociais com figuras públicas (e até uso de inteligência artificial em conteúdos falsos) contribuem para a influência dos jogos. Casos como os da advogada e influenciadora digital Deolane Bezerra e do cantor sertanejo Gusttavo Lima – indiciados por lavagem de dinheiro envolvendo as bets, reforçam a importância da regulamentação para criar um ambiente que ofereça alternativas saudáveis e seguras.
Em meados de 2020 os sites de apostas se popularizaram. Relatório do Banco Central aponta que as bets já movimentam mais de R$20 bilhões por mês. Ano passado, já no governo do atual presidente Lula, os jogos on-line foram incluídos na lei de quota fixa legalizada. E também foi sancionada uma nova lei (14.790/2023), na qual o Ministério da Fazenda passou a ser responsável pela regulamentação do setor de cota fixa.
A partir disso, em 2024, o MF criou a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA-MF). Com isso, os sites de jogos passaram a ter que atender alguns critérios como: só realizar transações bancárias com instituições de pagamento regularizadas; identificar os jogadores com documentos e atender aos requisitos de proteção de dados. As medidas buscam diminuir as fraudes, mas ainda se mostram insuficientes. O reconhecimento facial dos jogadores é outra forma de proteção em implementação, mas ainda está em fase de testes.