Liderança de muitas gerações do movimento negro, Zélia Amador de Deus, 70, primeira reitora negra em universidade pública no Brasil segue sendo uma voz ativa no combate ao racismo e defesa dos direitos humanos no Norte do país. Um dos reconhecimentos que recebeu pela sua trajetória foi o Prêmio BrazilFoundation de Direitos Humanos, ONG de Nova York.
Além de docente da UFPA, a Universidade Federal do Pará, Zélia Amador também é atriz, fundadora do Centro de Defesa do Negro no Pará e integra a Coalizão Negra por Direitos – principal aglomeração de movimentos negros, como Instituto Marielle Franco, Conaq (Coordenação Nacional Quilombola) e Uneafro. Em entrevista, a militante e intelectual revisita momentos-chave na luta antirracista e faz defesa entusiasmada da universidade pública e da política de cotas raciais.
PerifaConnection – A senhora participa dos debates sobre a importância das universidades públicas. Em razão disso, foi homenageada em Nova York e teve um documentário em curta-metragem, o Amador, Zélia – lançado em 2021, idealizado por Glauco Melo, com roteiro do jornalista paraense Ismael Machado. Que história é essa?
Zélia Amador – Olha, eu sou Zélia Amador de Deus, militante do movimento negro e uma das fundadoras do Centro de Defesa do Negro do Pará, fundado há 41 anos. Também sou professora emérita da Universidade Federal do Pará, onde estou desde 1978. Na universidade, já ocupei cargos administrativos, fui chefe de departamento, diretora do Centro de Artes e vice-reitora, atualmente coordeno uma parte da Assessoria da Diversidade e Inclusão Social, um órgão ligado ao gabinete do reitor.
Sou resultado dessa oportunidade que a escola pública oferece, fiz mestrado na UFMG e doutorado na UFPA, então considero a escola pública de uma importância grande para a população negra no país. As universidades federais são capazes de mudar o destino dessas pessoas negras. Por isso luto pelas ações afirmativas, que obrigam a garantia de vagas para negros e indígenas na faculdade.
Quando entrei [na universidade] estávamos no período da ditadura e sempre fui uma lutadora para que a academia mudasse sua cara. Por muito tempo, nos cursos de maior prestígio (medicina, direito, engenharia), os negros eram africanos vindos via Ministério das Relações Exteriores. Hoje em dia você encontra pessoas negras em todos os cursos, não apenas nas licenciaturas.
A senhora faz parte de uma geração do movimento negro que é espelho para essa nova geração, que está nos cursos de ensino superior, formando coletivos e buscando cada vez mais autonomia. Como se encontrou nesse movimento?
Lélia Gonzalez veio antes de mim, eu a conheci. Uma mulher negra que deixou um legado para as mulheres latino-americanas e caribenhas, legado que inspira muitas de nós.
O meu avô era vaqueiro numa fazenda no Norte do Pará, onde minha mãe engravidou aos 15 anos. Eu vim para Belém com um ano de idade, porque minha avó queria que eu estudasse. Quando surge o Cedenpa (Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará), foi no bojo do MNU, com o manifesto de julho de 1978 no Teatro Municipal de São Paulo. Aquele manifesto inspira a criação de vários movimentos negros no Brasil inteiro, como o Centro de Cultura Negra do Maranhão, por exemplo.
Falando do Cedenpa, que trabalho vocês desenvolveram nesses 41 anos?
O Cedenpa está numa fase ótima, com várias atividades, está com projetos, tem o Bloco Afro Axé Dudu, acho que estamos com atividades muito fortes. Sempre trabalhamos em uma linha mais de reivindicação política e também em uma linha cultural, mas isso não é separado. As coisas se entrelaçam ao longo do tempo, a cultura negra é instrumento de luta.
Como esses dois lugares que você ocupa se encontram?
Uma pessoa negra na universidade que não assume sua identidade, some. Quando chegamos lá, o nosso corpo traz memórias de resistência, não tem como se desvencilhar do corpo. A universidade muitas vezes é minha tribuna de luta. Isso não é fácil, pela academia ser eurocêntrica, branca, você precisa construir o seu espaço. É preciso tecer teias para conseguir isso.
Qual é a situação dessas universidades este ano?
Você tem um pouco mais de negros e indígenas como docentes do que tinha na minha geração. Se a gente fizer um mapa das faculdades federais do país inteiro, você consegue encontrar negros enquanto professores. Na minha geração se contava nos dedos.
O que eu espero é que, mais tarde, com as cotas esse número aumente. Por ser sempre uma questão coletiva, esse espaço historicamente negado a nós é subvertido pelo nosso discurso, basta escutar o que o corpo está falando. O diploma é um bem para a sociedade, para o conhecimento. Diferenciando de uma classe média convencional, novas visões de mundo.
Como essas políticas de ações afirmativas podem ser melhoradas?
Eu diria que a cota talvez seja a política mais eficiente que conseguimos construir para dar conta de combater discriminações, desigualdades. O mínimo que tínhamos, este governo acabou, solapou como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Sem orçamento, quais as possibilidades de fato desse órgão combater o racismo? Isso precisa ser levado em conta no Ministério da Economia, Saúde, no Ministério da Educação, política de moradia, em todas as áreas.
Quem teve prejuízo com essas enchentes em Minas, na Bahia, São Paulo, Petrópolis. Nós que habitamos esses espaços.
Uma pessoa negra foi morta no seu condomínio só por ser negro, eu chorei muito com o caso do Moïse, os racistas estão de plantão, mas nos últimos anos as pessoas perderam o pejo, elas se acham seguras com seus racismos, suas misoginias, nos matam respaldadas nesse governo.
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo