Mulheres estão na linha de frente nas chefias de famílias e na busca por direitos. Trajetórias femininas ancestrais ainda ecoam nos morros e vielas de maneira que a luta das mais velhas continua nos passos das mais novas. A caminhada de Camila Moradia é a prova disso. Cria da Grota, ela se inspira em mulheres de dentro e de fora de sua família para abrir novos caminhos na luta por dignidade.
“Lembro muito bem da Dona Odete, que foi a primeira mulher presidente de Associação de Moradores no Complexo do Alemão, na Grota. Ela sempre passava na minha porta com um monte de cano e uma bolsa de ferramentas. Tinha isso muito fixo: quando eu crescer quero fazer o que essa mulher faz. Porque todo mundo pedia ajuda a ela e ela ajudava”, recorda Camila.
Aos 39 anos, Camila é liderança na luta por moradia, fundadora do coletivo Mulheres em Ação do Alemão e atuante no Plano de Ação Popular do CPX. Sendo mãe de Leticia, Giovana e Thalles, não é de hoje que sua jornada mescla maternidade e ativismo.
Apesar de sempre se destacar na escola e nos projetos sociais, Camila só se entendeu como liderança durante o processo de remoção que sofreu na Favelinha da Skol, há mais de dez anos. O local foi considerado como área de risco pelo governo do Estado. Aproximadamente 500 famílias foram removidas do local com a promessa de que, em um ano, novos apartamentos seriam construídos
“Quando não cumpriram o combinado, eu entendi que precisava reorganizar os moradores para fazer um movimento. Ali caiu minha ficha de puxar para mim a responsabilidade de falar que a gente tem direito e quais direitos que a gente perdeu lá atrás quando foi enganado”, conta Camila.
De lá para cá, são 12 anos vivendo no Aluguel Social. Foram cerca de três anos sem um ponto fixo e sem uma clínica de referência. Camila não conseguia marcar consultas para seus filhos por falta de um comprovante de residência. Como consequência, ela sofreu com hipertensão e diabetes e as crianças não tiveram acompanhamento periódico na primeira infância.
As vivências de Camila mostram como um direito precisa do outro para ser de fato garantido. Apesar da Constituição, é comum que territórios favelados sofram com a negação de acessos básicos para uma vida saudável. A inconformidade de lideranças é o que abala as estruturas da desigualdade e abre caminhos para se pensar em qualidade de vida nas favelas.
“Eu gostaria muito de dizer que a luta por moradia digna é vida, mas ainda não é. É sobrevivência. Já me mudei mais de 14 vezes durante esses anos. Não é simples de você conseguir um comprovante de residência. O enfrentamento é para garantir sobrevivência porque infelizmente a gente ainda não consegue viver”, desabafa Camila.
Na organização da luta por moradia, Camila percebeu que a maior parte das famílias removidas eram chefiadas por mulheres. Para ela, a combinação de luta e maternidade funcionam de forma natural. Anos atrás, em ocupação em equipamentos públicos ou em Brasília, ela estava presente amamentando seu filho mais novo.
“Costumo dizer que a luta de quem é da favela já vem de dentro ventre. A maternidade junto com a luta é algo muito orgânico. Não é que ela se junta, é um processo que vai nascendo ali no caminho. As mães precisam lutar pelos direitos dela enquanto mulheres e também pelo direito dos filhos”, afirma Camila.
No marco do início do projeto de recuperação do Teleférico do Alemão, em 2022, Camila questionou o governador Cláudio Castro sobre a demora da entrega das casas das famílias removidas. No mesmo dia, um edital para construção de unidades habitacionais foi lançado. As obras estão em andamento.
Camila enxerga o Complexo do Alemão como o lugar em que estão fincadas suas raízes. Os desafios em ser uma mulher negra, mãe e ativista neste território não são poucos. O cansaço e a sobrecarga materna atravessam o cotidiano da liderança. Por outro lado, olhar para referências que admira desde a infância impulsiona sua caminhada.
“Eu vi minha avó, vi a dona Odete, vi a Lúcia Cabral, vi tia Bete. Isso é o que me alimenta enquanto mulher negra, mesmo sendo invisibilizada no território e tendo, muitas vezes, meu trabalho desmerecido. Pode falar o que quiser da mulher negra aqui que eu continuo passando pela Avenida Itaóca olhando o resultado do trabalho que eu fiz. Isso não tem preço! É o que motiva e dá vontade de sair gritando mesmo: foi uma mulher negra que conquistou!”, finaliza Camila.