Sabe-se bem, embora não custe relembrar: as Américas foram o destino, entre os séculos 16 e 19 de, pelo menos, 10,7 milhões de africanos raptados e escravizados. Os dados são da pesquisadora Marcia Amantino, do Grupo de Pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Desse contingente, cerca de 4,8 milhões desembarcaram no Brasil, em sua maioria homens (jovens e crianças). Já tinham sua imagem fortemente associada à força braçal.
Dados do primeiro censo demográfico, de 1872, evidenciam a presença da população negra no perfil societário de nosso país. Naquele censo, declararam-se pardos ou pretos 58% da população; 38% branca e, 4%, indígena. De acordo com dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2019, 56,2% da população brasileira se declarou preta ou parda.
Conhecer, portanto, o perfil desta população, inter-relacionando gênero e classe social, será essencialmente necessário para encarar os desafios históricos da sociedade brasileira.
Diante destes dados, fica a questão: o que foi feito do homem negro no Brasil?
A representação do que venha a ser o homem negro em nosso país é um processo de disputa da masculinidade criada pelo sistema patriarcal europeu, que tem por referencial o homem branco, cisgênero, heterossexual, proprietário –o pater familiae (o mais elevado estatuto familiar na Roma Antiga, sempre uma posição masculina).
As diversas instituições que formaram a sociedade brasileira vêm utilizando, ao longo de nossa formação, linguagens para apontar a masculinidade diretamente apontada ao homem branco como o padrão — como meio de manutenção de sua centralidade na condição de “cidadão de direitos”. Essa centralidade está presente tanto nos princípios que orientaram a distribuição das capitanias hereditárias entre os donatários, no Brasil colônia, quanto naqueles que orientam a escolha dos presidentes das atuais instituições de nossa sociedade, como jornais impressos, rádio, site.
A representação que, hegemonicamente, o brasileiro tem do homem negro, bem como das mulheres negras e brancas, é uma construção simbólica e material, que visa a sua inferiorização frente ao homem branco. Henrique Restier, pesquisador do Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos), aponta que o baixo status do homem negro decorre, em grande medida, do fato de o homem negro compor um grupo sócio-racial que rivaliza com os homens brancos pela conquista das oportunidades de poder social e recursos, por exemplo. Dentro dessa relação de poder, é estratégico para o homem branco criar mecanismos que subjuguem o homem negro –e o campo da produção de símbolos é poderoso para tanto.
Pois, afinal, qual é a representação que temos de homem negro? Será ele um ser humano sensato, educado, limpo, sensível, não violento, respeitador, provedor, bom marido e bom pai — características sempre atreladas ao imaginário de personagens brancos, do sexo masculino —, seja no telejornal, no horário eleitoral, nas novelas e nos livros?
Para o professor jamaicano Stuart Hall, a representação é a produção do significado dos conceitos da nossa mente por meio da linguagem. Ou seja, a maneira como compreendemos as coisas, os acontecimentos etc. está diretamente ligada à produção de sentido. A isso estaríamos submetidos desde o nosso nascimento.
Um conjunto de representações produz a cultura de um povo: esta construção dialética passa por diversas linguagens, sendo o audiovisual, no caso do Brasil, uma das mais acessadas, se considerarmos o sucesso das telenovelas. Observe, ainda, que estes meios de produção estão sendo geridos por homens brancos.
A representação do homem negro é construída com a intenção de desumanizá-lo. Não seria possível torná-lo o principal alvo das forças policiais se aos homens negros fosse entregue uma construção humanizada. Não seria admissível ter 75,4% de pessoas negras assassinadas pela Polícia Militar no Brasil em contraste com os 24,6% de pessoas brancas, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019, sem tornar estes corpos descartáveis simbolicamente.
A pouca presença de pessoas negras, em especial de homens negros, em instituições-chave para a produção e reprodução de símbolos e signos sociais, fortalece a centralidade das pessoas brancas, em sua maioria homens, em detrimento dos demais sujeitos. Podemos classificar isso como racismo institucional.
O que buscamos é a produção social de uma outra representação do homem negro, que se dê a partir das práticas de outras masculinidades, que se desprenda da sujeição à masculinidade branca. Para tanto, a ocupação de instituições diversas por homens negros se faz necessária.
É aqui que propomos a presença de homens negros, progressistas e politicamente conscientes da condição social brasileira das pessoas negras, em espaços de política institucional. É necessário um movimento de homens negros na política para que possamos disputar o poder político para o povo negro ao lado de todas as pessoas que se posicionam contra as políticas higienistas e racistas.
É necessário mudar a representação imagética do homem negro — daquele que carrega um fuzil ou que apenas trabalha nos serviços braçais — para uma representação de um homem negro propositivo também no campo político, capaz de dialogar coletivamente e arquitetar políticas públicas que deem conta de combater as históricas mazelas geradas contra o povo negro.
Precisamos de homens negros na política institucional que sejam capazes de ter sensibilidade o suficiente para compreender que muitas mulheres negras já estão nesta luta há tempos, entendendo-as como aliadas dentro de um projeto de país que não mais explore e exproprie a população negra, mas sim que abra condições e crie estruturas para o desenvolvimento humano dessa maioria social/populacional.
Cleber Ribeiro
Coordenador IMJA/Seja Democracia, integrante do Honepo e colaborador do PerifaConnection
Osmar Paulino
Diretor geral do FAIM Festival, coordenador do Honepo e colaborador do PerifaConnection
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo