“1831, o Rio de Janeiro, na voz unânime dos viajantes, não constituía nenhum modelo de limpeza – ruas estreitas e tortas, cortadas no centro por uma vala onde se acumulava toda espécie de imundície, casas sem luz (…) e por toda parte baratas, lacraias, cupim, feiúra, descaso, negligência e abandono”. Marques Rebelo
A exclusão das favelas por parte do poder público nunca foi novidade para os cariocas (favelados e negros). Entra governo, sai governo, entra década, sai década, a única ação que adentra e permanece é a da opressão, da violência, executada pelo aparato repressivo do estado. Uma vez que, assistência às famílias empobrecidas quanto ao saneamento básico, melhor estrutura de moradia, alimentação rica e de qualidade, oportunidade de melhores empregos, é sempre prometido, mas nunca cumprido. Aquela velha ladainha de sempre, como é dito popularmente.
Com a pandemia de covid-19 no Brasil, o que aparentemente estava resolvido, distante dos olhos atentos da mídia tradicional, dos que estão à frente desta cidade, explodiu como um vulcão. A desigualdade socioeconômica, o desemprego, a fome, acirrou-se ainda mais e a favela, a mais afetada, teve, portanto, que se reinventar e depender dela mesma para seguir sobrevivendo.
VIDIGAL, DA HISTÓRIA À LITERATURA
Recentemente acompanhei uma ação social promovida pelo Voz das Comunidades na conhecida favela do Vidigal. Visada pelas paisagens exuberantes, transformada em ponto turístico, e também por morar alguns artistas conhecidos, o Vidigal, localizada entre bairros ditos nobres, tem uma história interessante, a começar pelo nome. Eu, como curioso que sou, tive que ir em busca de informações históricas.
No século XIX havia um guarda real da Polícia da Corte que se chamava Miguel Nunes Vidigal. Major Vidigal, como ficou conhecido, era o típico policial linha dura que assustou muita gente nas ruas do Rio de Janeiro. O militar se tornou tão famoso que foi citado no “Memórias de um Sargento de Milícia”, um dos primeiros romances escritos no Brasil e que fala sobre corrupção, sendo o único personagem real escrito por Manuel Antônio de Almeida, autor do livro. Inclusive, em um dos capítulos, o autor o descreve da seguinte maneira: “O Major Vidigal, que principia aparecendo em 1809, foi durante muitos anos, mais que o chefe, o dono da Polícia colonial (…) Habilíssimo nas diligências, perverso e ditatorial nos castigos, era o horror das classes desprotegidas do Rio de Janeiro”.
Sabe-se quase nada sobre quando a comunidade passou a levar o nome do major de milícias, um dos homens mais influentes do século XIX. Entretanto, relatos indicam que Miguel Nunes ganhou de presente de monges beneditinos, em 1820, extensas terras que iam das encostas da Pedra Dois Irmãos até o mar, onde construiu a Chácara do Vidigal. Em 1886, seus herdeiros venderam a propriedade ao Engenheiro João Dantas, que pretendia construir no local o ponto de partida de uma linha férrea, que seguiria até o litoral fluminense. O projeto acabou não sendo concretizado, mas serviu de base para a construção da Avenida Niemeyer, que liga o Leblon a São Conrado.
Os primeiros casebres da comunidade local, então conhecida como Favela da Rampa da Niemeyer, foram erguidos na década de 1940. A favela teve um crescimento lento, até o ano de 1962, devido à presença de guardas que não deixavam melhorar as moradias, nem a construção destas em alvenaria. A partir deste ano, a Associação de Moradores começa suas atividades inibindo a atuação dos vigias, mas mesmo assim, o crescimento continua lento, devido à presença de um loteamento residencial para classe média que começa a crescer numa área contígua à favela. Entre 1965 e 1985, a comunidade do Vidigal se expande ao longo da Estrada do Tambá e hoje, junto com a Comunidade Chácara do Céu – menor e mais próxima ao Leblon e ao penhasco -, abriga mais de 75% da população do bairro.
Conta-se que o hotel de luxo Sheraton, em 1968, construído perto do Morro, tentou fazer com que a Praia do Vidigal fosse exclusiva dos hóspedes do estabelecimento. Porém, após uma briga na justiça, os moradores da comunidade ganharam a causa e praia seguiu pública e para uso de todos. No final da década de 1970, Vidigal se tornou um marco na resistência à remoção de favelas. Em plena ditadura militar, a associação de moradores, com o apoio dos advogados da Pastoral de Favelas – entre eles os juristas Sobral Pinto e Bento Rubião -, conseguiu evitar que os barracos da parte baixa da favela fossem destruídos para dar lugar à construção de empreendimento de alta nível. Alguns moradores aceitaram ser removidos para o Conjunto Habitacional de Antares em Santa Cruz. Os que permaneceram, começaram uma campanha para fazer melhoria nas condições da favela. Após intensa luta, os moradores conseguiram apoio político e popular que culminou com a edição, em 1978, de decreto de desapropriação da área para fins sociais, assinado pelo Governador Chagas Freitas, que afastou de vez o perigo da remoção.
SEMPRE FOI NÓS POR NÓS
No final do mês de setembro, a primeira ação social realizada pelo Voz, sob o comando do Rene Silva, ocorreu, tendo em vista que moradores do Vidigal também foram impactados pela crise sanitária que deixou muitos sem renda. A partir de uma equipe de voluntários, seguindo as orientações de prevenção contra o novo coronavírus, cestas básicas foram distribuídas às famílias em dois pontos do morro: Largo do Santinho e nas vielas e becos da entrada do CMS Dr. Rodolpho Perisse, onde em frente está localizada a Avenida Presidente João Goulart.
No primeiro ponto, a van que eu estava com um grupo estacionou ao lado de uma caçamba de lixo, no pé da ladeira, pois, onde íamos parar, mais acima, tinha um outro automóvel com marcas de bala no vidro. Um dos integrantes do “Nós do morro”, grupo que já atua há décadas no Vidigal, foi o responsável por dar orientações de pontos aos voluntários onde as famílias estariam precisando dessas doações. Com os alimentos organizados dentro de sacolas de mercado retornáveis, lá foram eles cumprir com missão. Enquanto isso, eu fiquei para observar o espaço, as casas, no alto, cobertas por algumas árvores, outras mais abaixo. Além disso, diante de mim, estava uma UPP. Nesse tempo, parei para conversar com um homem negro, de estatura mediana, aparentava ter acima dos 30, gari, que organizava a caçamba de lixo. Disse, quando perguntado, que trabalhava ali há alguns anos, que já conhecia o trabalho do Voz e via muita importância naquela ação. Lembro questioná-lo se outras ações por parte de outros grupos ocorriam, e ele comentou que alguns artistas faziam doações também, além das igrejas, enquanto a prefeitura mesmo nunca cumpriu o seu papel. Outra questão que falou foi a respeito da violência. Pois, segundo ele, quando tinha operação, as ruas ficavam desertas e todos os comércios fechavam. Quem mora em favela sabe que isso impacta diretamente o ir e vir das pessoas das mais diversas formas.
Em seguida, após essa conversa, entrei com três voluntários num beco um pouco estreito, de chão mais ou menos cimentado, onde moravam algumas pessoas. Conversei com uma senhora, negra, com cabelos bem grisalhos, que estava na janela da sua casa, que ficava no segundo andar da casa. A primeira pergunta que fiz foi sobre quanto tempo ela morava no Vidigal. Muita serena, de voz suave, ela me disse que nasceu no morro e portanto, estava ali há mais de 60 anos. Também comentou, quando perguntei sobre a violência, que naquele espaço já ocorreram muitos tiroteios, porém, de uns seis anos para cá, diminuiu (segundo ela, devido a muitas orações). Em relação à pandemia, questionei se conseguia se manter em casa, se faltou alguma coisa, e ela me disse que ficou em casa, não saiu para a rua e alguns vizinhos a ajudavam com as compras, já que morava sozinha. Muito religiosa, deu graças a Deus por não ter contraído a doença e que tinha fé que tudo isso que estamos vivendo ia passar. Comentou que ficou feliz com a ação do Voz e que, assim como as igrejas, estamos salvando vidas levando alimento para quem precisa. Tive nesse momento que conter minhas emoções e, infelizmente, por conta da distância e da pandemia, claro, não pude sequer abraçá-la. Despedi-me agradecendo pela conversa e desejei que ela ficasse com Deus.
Nas outras conversas que tive com outros moradores, ainda que só por alguns minutos, foi possível perceber o quanto eles, apesar de todos os problemas decorrentes da violência, das desigualdades, elas mantêm a fé acesa. Quando o estado não entra com políticas públicas em benefício de moradores de favela, a igreja passar a ter um papel fundamental na vida delas. Talvez por isso que não desistem.
Já no período da tarde, fomos ao segundo ponto no qual os voluntários entregaram mais cestas para as famílias. Já não estava mais com o grupo que eu estava antes, e sim com o outro. Paramos quase em frente ao CMS Dr. Rodolpho Perisse, na avenida Presidente João Goulart. Entramos numa viela e mais para frente os voluntários entregaram mais algumas cestas. Eu, para conhecer o lugar e falar com alguns moradores, segui em frente, subi alguns lances de escada de concreto, do lado tinha uma espécie de vala com esgoto a céu aberto. Acima diversas casas acabadas, semiacabadas e mais para frente um casebre. Vi algumas crianças negras brincando num parquinho improvisado e uma delas saiu correndo para chamar a mãe e avisar que estávamos distribuindo uma cesta com alimentos. Nesse tempo, fui convidado para entrar na casa de uma jovem, que aparentava ter menos de 25 anos. Como estava grávida, um dos voluntários foi levar a sacola à ela. Eu aproveitei para conversar com ela e, embora estivesse limpando a casa, me ofereceu água e convidou para entrar. Subi mais duas escadas, sendo uma delas muito singela, tanto que eu achei que estava a ponto de cair. Muito receptiva, mostrou a cozinha, o banheiro e o quarto. A casa tinha apenas três cômodos. Disse que ela e o marido, que também aparentava ter mais ou menos 25 anos, estavam estruturando melhor o espaço e que se Deus quisesse, iam conseguir terminar. Agradeci a gentileza e desci as escadas para encontrar com o restante dos voluntários que iam se deslocar para uma rua mais abaixo daquela mesma via.
Quase para entregar todas as sacolas, entramos em mais um beco. Nele, nos deparamos com algumas pessoas que estavam conversando, um grupo de jovens, negros, fumando cigarro, que muito educados nos deram boa tarde, e paramos em frente a um bar. Um mulher, também negra, que aparentava ter uns 40 anos, com um pano na cabeça, muito parecido com o que a escritora Carolina Maria de Jesus usava, já tinha recebido a sacola de um voluntário e me pediu gentilmente para que eu ajudasse a levar a outra para irmã dela que não podia se deslocar, pois era uma pessoa com deficiência física (não possuía as duas pernas). Então, sem pensar, segui com a sacola nos ombros até a sua residência.
Passamos por diversos becos, vielas, com muitas casas juntas, muitos portas paralelas. Descemos diversas escadas, depois voltamos a subir, até finalmente chegar na sua casa. Primeiro me apresentou a irmã que morava na casa paralela a dela, num beco bem estreito. Conversamos rapidamente porque estava ocupada terminando de limpar a casa. Mas agradeceu muito e pediu para Deus me guiar sempre, pois eu era uma pessoa muito boa de coração. Depois, muito gentil, ofereceu-me água gelada da sua geladeira que ficava do lado de fora, porque viu que eu estava ofegante, e em seguida me apresentou a casa. Morava ela, o filho e a neta. O tamanho da residência era a de um quarto. Tinha um cômodo só. Uma cama, alguns móveis, uma televisão pequena, armários apoiados em tijolos e uma pequena geladeira. O banheiro que não consegui identificar onde ficava. “Tem que mostrar né?! Para você ver que não estou mentindo. A casa é pequena, simples, mas é minha. Agora, graças a vocês, vou ter o que comer”, disse ela sorridente, feliz, enquanto guardava os produtos no seu armário. Assim que terminamos de conversar, me despedi e ela fez questão de me levar até a saída do beco. Andando até a saída, não tive como impedir as lágrimas. Muitos pensamentos passaram pela minha cabeça, porque quem vem de favela sabe como somos ignorados e temos nossos direitos negados. Chegando na avenida, eu agradeci à ela por ter me guiado até a saída, porque eu provavelmente teria me perdido real se tivesse ido por conta própria.
A FAVELA SEGUE SENDO QUARTO DE DESPEJO
Como disse Carolina Maria de Jesus, a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos. Políticas de remoção fizeram e ainda fazem parte da vida das populações mais vulneráveis, bem como o descaso e o apagamento dessas pessoas enquanto cidadãos. Embora a favela do Vidigal tenha uma das mais belas paisagens do Rio de Janeiro (em meio à Zona Sul), a desigualdade social, econômica, as violências, a especulação imobiliária, a não ação do estado a partir de políticas sociais públicas em benefício da população, fazem-se muito presentes.
Essas pessoas, contudo, seguem de cabeça erguida, colaborando umas com as outras, dando assistência, trocando afetos e, como eles mesmos dizem, segurando as pontas quando dá, sem perder a alegria, a vontade de viver e, principalmente a fé em dias melhores. Costumo dizer, para finalizar, que a favela, diferente do que pensam e estereotipam, é lugar de gente de bem, trabalhadora, que batalha muito, todos os dias, faça chuva ou faça sol, e não deixa o samba morrer. Favela é quilombo. É resistência. E, assim como qualquer lugar, merece respeito, e dignidade.