Rildo Rielle Lemos. Esse é o nome de uma das figuras mais simpáticas e engajadas do Complexo do Alemão. Mas, se você procurar por Rildo, provavelmente, a maioria das pessoas não vai saber quem é. Agora, se você perguntar: “conhece o Baiano, o do mototáxi?”, com certeza alguém vai dizer que já subiu e desceu as ladeiras do Alemão na garupa da motocicleta do mais carioca dos baianos.
Permita-me revelar aqui uma experiência pessoal. Na primeira vez em que subi em um mototáxi, coisa que nunca fiz em minha favela de origem, o Baiano “batizou” a minha primeira viagem em uma moto, percorrendo as ruas do Alemão. Assim que sentei na garupa da moto, rapidamente falei. “Eu tenho uma filha de cinco meses, hein? Vai com calma”. Apelei, confesso. Uma mãe sempre tem medo de morrer. Prontamente, Baiano respondeu um “pode deixar”, deu um sorriso com confiança, deixando a repórter aqui aliviada. E é essa a essência do Baiano, deixar você à vontade (mesmo que a gente esteja com um pouquinho de medo, pois como diz Jorge Ben Jor, “prudência , dinheiro no bolso e canja de galinha não faz mal a ninguém”).
Baiano não é somente um mototaxista. É um nome importante na comunidade. Além de levar mobilidade às pessoas em vielas apertadas, subidas cansativas, para ele não tem tempo ruim. Entra em locais onde o governo não vai e facilita a locomoção dos moradores. Para ele, ser mototaxista é mais que subir na moto.“A importância do mototaxista dentro das comunidades é praticidade e agilidade, onde a moto tem que chegar no destino onde o carro não chega”, explica Baiano
O rapaz de 31 anos não limita seu trabalho somente ao Alemão. “Atuo no Rio e Grande Rio”, afirma. Também conquistou, através do seu jeito calmo e ao mesmo tempo comunicativo e responsável, a confiança de Ongs e projetos importantes da região. “Atuo com parcerias, com projetos e ongs, como o Voz das Comunidades, Coletivo Papo Reto, Na Ponta dos Pés, Talentos do Morro, Pipas Labs e entre empresas e lojas”, confirma.
O Baiano faz parte da história do Brasil
No entanto, o caminho para chegar a satisfação profissional não veio fácil. Assim como a maior parte dos brasileiros, Baiano é fruto de um grupo de pessoas que saiu de seus locais de origem em busca de uma condição de vida melhor no Rio de Janeiro. A migração dos nordestinos para o sudeste foi um marco histórico na construção do Brasil. E essa forte onda de pessoas oriundas de outros estados se deve à industrialização e ao desenvolvimento econômico das chamadas “cidades grandes”.
Segundo dados do Censo, até 2010, mais de um milhão de pessoas já haviam escolhido o Rio de Janeiro como o lugar das oportunidades, ficando apenas atrás de São Paulo, que abriga mais de 4,5 milhões de nordestinos. E foi nessa leva, na década de 80, que a mãe do Rildo, Dinamar Gonçalves, saiu de Feira de Santana, na Bahia, e foi morar no Complexo do Alemão. O menino tinha apenas dois anos de idade quando conheceu o Rio como lar. Pelas ruas da Alvorada, o Rildo, então, deu lugar ao Baiano.
Infância e adolescência: estudo e trabalho
O rapaz teve uma infância difícil, conforme ele mesmo destaca, como ausência paterna e falta de itens básicos para a sobrevivência. “Minha infância foi bastante sofrida, pois não era uma criança como todas as outras. Eu lembro que no dia dos pais não tinha o meu pai presente nos melhores momentos. Lembro também das dificuldades na minha vida e na minha casa, que era um cubículo para dormir meus três irmãos e minha mãe e eu. Chegamos a passar necessidades, pois minha mãe não tinha trabalho fixo”. Baiano afirma que, para sobreviver, a mãe fazia faxinas eventualmente e vendia produtos de revistas de cosméticos. Também tiveram ajuda da família, que foi fundamental. Afinal, eles o receberam no Rio e não chegaram aqui sem um destino certo.
Na adolescência, o menino já era responsável, juntamente com a mãe, em manter a família. Aos doze anos de idade, ele fazia de tudo um pouco: lavava carros dos vizinhos, capinava quintal, buscava as crianças na creche, jogava lixo fora. E depois dos afazeres, seguia direto para o curso. Mas Baiano ressalta a insistência da mãe, Dinamar, em fazer o filho estudar, mesmo diante das dificuldades. “Minha mãe sempre persistiu nos nossos estudos, mesmo ela não tendo o ensino médio”. destaca.
Quando tinha 15 anos, Baiano conseguiu uma oportunidade para trabalhar junto com a tia. Ali, segundo ele, aprendeu a lidar com outros públicos e ampliou sua visão de mundo. E, além de tudo, reforçou o que era ter respeito e caráter, o que já havia aprendido em casa e, naquele momento, também, no trabalho. “Eu lembro que eu era office boy. E de office boy, passei a ser atendente de exportação e importação aéreo e marítimo”. Foi um pulo gigantesco na minha vida, porque eu aprendi a fazer cálculos, a lidar com órgãos como a Anvisa, Agricultura, Marinha Mercante…”
O jovem até pensou em fazer faculdade de comércio exterior, mas desistiu da ideia e resolveu entrar em um curso profissionalizante. Dinâmico como sua personalidade, escolheu fazer Rede de Softwares, área ligada à tecnologia da informação. De acordo com Baiano, estudar e se especializar em algo poderia até ser cansativo, mas era uma forma de ser um estímulo para a família. “Pra mim era uma coisa que ocupava a mente, porque minha mãe não teve estudo. Então, eu queria dar orgulho pros meus pais e ser o exemplo da família. Então, para mim, era de boa estudar e fazer curso”.
E dessa experiência toda, Baiano disse que se não fosse mototaxista seria advogado. “Minha tia era advogada. Eu gostava quando ia nas audiências junto com ela”. Ele afirma que gostava da postura e da transparência da tia diante das autoridades. No entanto, não era somente as audiências que chamavam a atenção do garoto. O entendimento das leis sempre o atraiu. “Se as pessoas conhecessem as leis, seus direitos constitucionais, talvez as coisas estivessem melhor, né?”
No Brasil, o trabalho é legalizado a partir dos 14 anos devendo seguir as regras da Lei de Jovem Aprendiz. O trabalho não pode prejudicar o desempenho escolar, por exemplo. As diretrizes dos trabalhos também devem respeitar o Estatuto da Criança e do adolescente (ECA), que passou a ser um marco no tratamento referente a esse público. A atual Constituição Federal diz no art 227 que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respieto, à liberdade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão.
Mototaxista, sim senhor!
“Já pegou o meu filho? Olha, vê se ele se arrumou direitinho, deixa ele na porta da escola. Ele não está arrumado ainda? Então manda ele se arrumar! Tá bom, amigo, tchau”. Esse foi um diálogo pelo telefone que ouvi de uma moradora. Em alguns dias, Baiano desce e sobe as ladeiras, com Amom Ribeiro, um menino de 16 anos. O adolescente, filho da fotógrafa Vilma Ribeiro, tem deficiência intelectual e cognitiva e se comporta, muitas vezes, com uma ingenuidade que pode o colocar em risco. Não sabe se defender das armadilhas de uma cidade violenta e é aí que entra a confiança nos mototaxistas, principalmente no Baiano. Logo, ele também faz parte da vida do jovem e ensina a sagacidade de viver em uma cidade tão caótica Nos corre nas ladeiras e nas pistas, ele é transportado para a escola com segurança.
Vilma explica que começou a utilizar com mais regularidade as motos quando foi morar no alto da comunidade. “Eu subia e descia o morro com as crianças com frequência. Eu vim morar com a minha sogra, há mais ou menos uns 5 anos, que é na parte alta do morro. E tudo o que você faz na rua tem que ser rápido, pra descer e pra subir. Aí eu aderi a moto”, explica Vilma.
Logo após começar a utilizar a moto do Baiano como transporte, a fotógrafa percebeu a diferença de tratamento. “Eu vi que ele era um mototaxista diferenciado, porque a atenção não era de mototaxista e passageiro e sim, de uma atenção de um amigo. Você vai reparar o carinho e a dedicação que ele tem com você e vai pegando preferência por quem te dá mais atenção e isso se torna um atendimento humanizado”, relata Vilma.
Há cerca de oito anos, ele começou a cativar os primeiros clientes, segundo ele, em um momento em que não apareciam oportunidades de trabalho. Viu, no mototáxi, a saída para conseguir ultrapassar o obstáculo financeiro. “Eu não conseguia arrumar um trabalho digno e honesto e levar o sustento para a minha família”. explica.
Hoje, o mototaxista já é reconhecido e tem o respeito dos que vivem em toda a região. No entanto, segundo ele, ainda sofre com abordagens policiais. O preconceito acerca da profissão é grande também em outros setores da sociedade, que não conhecem bem a missão e o trabalho de ser mototaxista. “As autoridades policiais veem nosso trabalho não como um mototaxista, mas sim, como um bandido. Na visão da pessoa, da sociedade, o mototaxista é uma pessoa que leva vagabundos, é o que faz o ‘aviãozinho’, é o que faz o ‘bonde’. Mas isso não tem nada a ver, porque em todas as profissões têm corruptos, seja na polícia, seja na política, principalmente”, diz Baiano.
Baiano afirma que, apesar das situações ruins pelas quais passa, o contato com as pessoas é fundamental para fazer seu trabalho valer a pena. “A gente acaba atraindo um passageiro como nossa família, que a gente tá todo dia buscando, levando. E aí acaba virando um amigo”.
O senso de coletividade e respeito em questão preenche um vácuo deixado pelo Poder Público que pouco pensa ou nada faz em relação à infraestrutura nas favelas, como a mobilidade. Como subir as compras de mercado? De que forma um morador vai encarar uma ladeira, após horas de trabalho e de transporte lotado? E é aí que entra Baiano e os companheiros de trabalho que criam laços com a localidade e seus moradores. “Tem momentos que a gente ajuda pessoas da comunidade. Às vezes, aparece alguém sem o valor devido da corrida. A gente acaba ajudando de alguma forma, né?, completa o mototáxi.
Para se ter uma ideia da negligência com a categoria, somente em 2019 foi regulamentada a profissão de mototaxista na cidade do Rio de Janeiro. Na época, o então prefeito Marcelo Crivella disse que os mototaxistas poderiam ter as mesmas condições de outras categorias. As conquistas seriam ligadas a financiamentos e juros baixos na compra de veículos, por exemplo. Mas, também os profissionais deveriam seguir uma série de deveres, como ter no mínimo 21 anos e ter carteira de habilitação A. Se na prática das comunidades a lei entrou em funcionamento e se ajudou os mototaxistas, ainda não se sabe. O que se tem conhecimento é que a mobilidade e coletividade continua acontecendo. E sem a ajuda governamental.
Baiano continua fazendo o que acha essencial quando não está trabalhando. Estar com a família, amigos, estudando, brincando com os sobrinhos. “Quando não estou trabalhando, eu sou uma pessoa extrovertida, familiar, brincalhão”. Mas os clientes-amigos discordam, Baiano é assim, mesmo quando está nas corridas de moto.