Por: Pâmela Carvalho para PerifaConnection, na Folha de S.Paulo
Quantos de nós não ouvimos que descer o morro é subir na vida? A frase tem a ver com o ideário preconceituoso que foi criado sobre os morros e as favelas. Sofrendo com remoções, promessas não cumpridas de diversos governos e com o histórico problema de habitação no Brasil, as favelas se tornaram alvo fácil para o racismo e preconceito de classe.
Na década de 1950, a escritora Carolina Maria de Jesus refletiu sobre isso: “Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” A autora revela como a sociedade vê as favelas e a cidade como um todo, a partir de uma divisão de raça e de classe. A zona sul e o centro seriam a sala de visitas. O lugar a ser mostrado para o mundo e ocupado pelos considerados “nobres”. Já a favela seria o quarto de despejo. Aquela parte da cidade para onde é empurrado aquilo e aqueles que dentro dos parâmetros higienizantes e racistas, não deve ser visto.
Em 1987, a cantora e compositora Jovelina Pérola Negra, gravou a canção “Sonho Juvenil”, composta por “Guará: “Ai, que vontade que eu tinha de ter um carango joinha e morar na Vieira Souto em Copacabana […] Aspirar ar puro, fresco ar primaveril, abrir a janela ver o mar azul, ver a turma me chamando de Garota Zona Sul.”
O “sonho juvenil” de ser “a garota zona sul” foi colocado como ideal para muitas gerações de favelados e faveladas. Assim como a ideia de que a favela é o que há de pior na cidade ou, como disse o ex-governador Sérgio Cabral, “fábrica de marginal”. Como construir uma autoestima positiva enquanto favelado, se o governador de seu estado à época, defende a exterminação dos ditos “marginais” que seriam fabricados na favela?
Gerações de famílias saíram de suas favelas de origem – muitas vezes indo morar no mesmo bairro, mas fora da área considerada morro ou favela – numa tentativa de ascender socialmente e escapar dos estigmas que pesam sobre os favelados. Raízes tiveram de ser arrancadas por conta de políticas públicas pautadas em genocídio, desigualdade e uma série de preconceitos.
Apesar de todos os desafios, esta história tem um outro lado, que ficou ainda mais evidente com a pandemia de Covid-19. Muitos jovens fortaleceram ainda mais as suas relações com as favelas onde nasceram ou moram, a partir de ações de solidariedade. Depois de diagnosticar o aprofundamento das desigualdades e o aumento da fome nos lares favelados, surgiram coletivos, frentes e grupos de solidariedade. Se fortaleceram também, outros movimentos já existentes.
São muitos os nomes, rostos e histórias. Cito alguns que são referência para mim, explicitando que o movimento é coletivo. No Jacarézinho, Thiago Nascimento funda o LabJaca e o Jacaré Basquete, atuando também na coalização Jaca contra o corona. As ações ressaltam a importância da produção de dados e garantia de direitos à população do Jacaré.
No Acari, jovens como Luis Melo, nascido em Groaíras (CE), e morador do Amarelinho (RJ), se organizaram em torno do Coletivo Fala Akari antes mesmo da pandemia. O grupo, que realizava ações culturais e debates em torno das violências de estado, tem atuado também no combate à fome.
No Morro da Providência, Hugo Oliveira, que já desenvolvia projetos de arte e educação como a Galeria Providência, co-cria o comitê de emergências SOS Providência. Para além da segurança alimentar, a luta de Hugo é pelo reconhecimento do Morro da Providência enquanto local de produção de conhecimento e políticas culturais para a cidade.
Cito diretamente estes três homens pretos que me inspiram e estabelecem fluxos de (re)conexão com a favela, mas temos ainda iniciativas como Frente Cavalcanti, Frente Maré, Frente CDD, Fórum Grita Baixada, Coletivo Papo Reto, Voz das Comunidades, Avante Serrinha, Redes da Maré, Coletivo Macacos Vive, Apadrinhe um Sorriso, Movimenta Caxias, entre tantos outros.
Não estamos inventando a roda. Nossos mais velhos e mais velhas construíram as estradas para que pudéssemos caminhar. Os fluxos migratórios feitos por alguns dos que nos antecederam, muitas vezes foram estratégias de sobrevivência. Se hoje podemos nos voltar ainda mais para os nossos territórios e regar as nossas raízes é porque nossos pais e avós não nos deixaram esquecer que “você pode até sair da favela, mas a favela nunca sai de você”.
Como cantaria Mano Brown em “A fórmula mágica da paz”: “Minha área é tudo o que eu tenho”. Estes jovens e centenas de outros mais têm fortalecido a noção de que para sabermos quem somos, temos que saber de onde viemos. É o território que nos constitui enquanto sujeitos no mundo. Nossas favelas nos formam enquanto agentes de construção de um futuro onde exercemos cidadania plena.
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo