Ilustração: Raífe Sales / Voz das Comunidades
A vida real acontece longe dos holofotes das redes sociais e é de constante observação e aprendizado sobre o que de fato acontece com os nossos corpos. Corpos que transicionaram ou que estão em constante transição, lidam com o apagamento de uma sociedade cheia de si e que só reforça a urgência de que nossas demandas surjam como gritos estridentes para chamar atenção sobre assuntos que poucos sentem vontade de estudar ou entender.
Pensei em trazer a temática silenciamento de corpos trans aqui para a coluna justamente por ter lido durante o meu processo de transição múltiplas formas de apagamento. Quando decidi iniciar a transição logo vi que todos os meus privilégios acumulados nada me valiam. Não importa se você tem uma graduação, um bom currículo, bons contatos e relações consistentes. Existe um cistema que trabalha para que nossos corpos não sejam amados, mas sim que sejam objetificados. Que nossas publicações, por mais que precisas, não sejam lidas. Que as nossas vidas sejam ceifadas sem direito a cobrança de justiça. Dani Balbi é doutora na melhor universidade do país, mas tem que lidar com o apagamento de sua trajetória acadêmica quando é chamada somente para falar sobre questões de corpos trans. Os mais de 12 anos de pesquisa são ignorados.
De acordo com uma breve pesquisa no dicionário, silenciamento é ato ou efeito de silenciar. Julgo que a sociedade tem dentro do seu histórico a excelência no ato silenciar.
A situação tende a piorar se você acumula algo que eles (sociedade cis) entendem como “minorias”. Sim, é um entendimento unicamente deles, afinal, não somos poucas. Somos muitas, muitos e muites. Há um questionamento importante a se fazer: é possível pensar gênero sem pensar raça? Questiono isso toda vez que me recordo do medo que me foi presenteado quando eu me deparei com a informação de que um corpo de uma mulher trans tem apenas 35 anos como expectativa de vida no Brasil. Questiono também se por ser preta reduzo ainda mais essa expectativa cruel. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), pode-se afirmar que o Brasil é o país que mais assassinou a
população trans nos últimos dez anos. Somente no ano de 2019, vítimas negras e trans representaram 82% da população trans assassinadas e em 80% dos casos apresentaram requintes de crueldade, o que reforça todo o meu medo.
O medo pode ser lido como combustível para que eu encontre forças para a produção desse texto, de trabalhos que me aparecem, e forças para superar todas as recusas que recebo quando me candidato a uma vaga de emprego. Empregabilidade é uma questão para nossos corpos, sabia? Empresas se esforçam para atrelar suas respectivas imagens à militância que parece somente incluir homens gays, mulheres lésbicas e qualquer outro corpo que não “seja confuso” ou que demande explicação. Como resultado, temos pessoas trans em situação de rua ou vivendo da prostituição de seus corpos como obrigatoriedade.
Durante a semana conversei com a minha amiga Gabriela Loran, que é atriz, criadora de conteúdo na internet. Nessa conversa, perguntei sobre como ela percebia a sociedade e quais seriam as formas ideias para combater esses silenciamentos que sempre foram destinados à nossos corpos.
“Eu acho que a gente precisa usar a nossa voz pra mostrar que a gente tá aqui e que temos voz para falar sobre nós mesmas. É por isso que tento desenvolver o meu trabalho na internet, onde eu não peço voz e sim faço a minha própria voz, afinal, voz a gente sempre teve, o que não temos é espaço. E chegou o tempo em que entendo que se eu não tenho espaço, eu faço o meu espaço através das redes sociais para continuar produzindo e para que eu possa abrir portas para outras manas”, diz Gabi.
Nossas vivências conversam porque Gabriela, assim como eu, é uma mulher trans e preta. A sensação de cansaço também é contínua e só reforça a necessidade de tomarmos as doses de coragem e força para lutar contra as opressões que nos atingem.
“É muito revoltante saber que por mais que a gente passe por tanta coisa, ainda tem pessoas que deslegitimam a nossa voz e tentam silenciar a gente, quando na verdade o que a gente mais precisa é gritar. Ser quem a gente é. Então, quando eu percebo esses episódios, tento intervir o máximo que eu posso. Seja fazendo vídeos retrucando, seja gritando no meio da rua, seja querendo entender o que tá acontecendo.” desabafa.
A problemática da nossa sociedade está na ausência da autocrítica. Confesso que tenho me percebido mais esperançosa, mas a minha esperança coexiste com corpos parecidos com o meu que estão em situação de rua, vivenciando o desemprego, a fome e sendo assassinados. Sinto a necessidade de escrever sobre isso e sei que não será a última vez que farei esses apontamentos que são urgentes e que revelam o que de fato é enfrentar opressões de uma ideia de sociedade que faliu. Torço para que Gabriela cresça ainda mais e também torço para que oportunidades me apareçam para sinalizar com caneta vermelha o que está errado e
precisa ser corrigido.
*cistema: escreve-se sistema com “c” para afirmar o entendimento de que vivemos em uma sociedade com um sistema patriarcal (dominada por interesses de homens) e cisgenero (de pessoas não transexuais, transgêneros e travestis).