O cargo de primeira-bailarina é o mais alto na hierarquia de uma companhia de balé. É este o lugar que Ingrid Silva ocupa, entre os 17 membros da companhia Dance Theatre of Harlem, sediada em Nova York. A carioca de Benfica não imaginava, porém, que um dia fosse ser bailarina. Tinha fascinação por natação, esporte que praticava desde os 3 anos, e também se aventurava na ginástica olímpica. O balé despontou como possibilidade aos 8 anos de idade, mas foi só aos 12 que teve certeza de que seguiria a vida na ponta do pés.
Ingrid conversou com o Voz das Comunidades no início de novembro diretamente de Utah, nos Estados Unidos. Numa tarde de sábado de lá e noite por aqui, ela contou com sua voz firme, conversando olhos nos olhos sobre a tela, um pouco sobre os passos que a conduziram ao bailado e que a tornaram nome de peso no balé clássico mundial.
Em 2015, Ingrid foi a primeira bailarina negra brasileira a estampar a capa da revista Pointe, uma das mais prestigiadas no segmento da dança. Sucesso de vendas, ela comenta ter sido muito gratificante e revolucionário o feito. Quando criança, não viu bailarinas como ela. Aos 31 anos, Ingrid pergunta: “O que poderia ter acontecido se eu tivesse uma referência negra na dança?”
Embora dance há mais de 22 anos, o nome de Ingrid foi posto em destaque somente nos últimos meses no Brasil. Em outubro, ela fez apresentações junto com a sua companhia em São Paulo e Trancoso. Participou de programas de tv e foi capa de jornais de grande circulação. Ingrid é enfática ao dizer que ser bailarina também envolve políticas de visibilidade. Provoca frisando que, com frequência, procuramos referências externas e deixamos em segundo plano os talentos do nosso país. “Eles existem”, ela diz. “Quantos deles conhecemos as histórias?”, questiona.
Por meio de suas plataformas, seja as redes sociais ou projetos dos quais faça parte, Ingrid compartilha fragmentos do seu dia a dia para tornar visível todo o processo presente no ser bailarina, que vai muito além da performance nos palcos. No começo de novembro, vibrou com a chegada das sapatilhas do seu tom de pele. Após 11 anos pintando sapatilhas claras demais para a sua pele, Ingrid pôde vestir um dos instrumentos de trabalho sem ter que alterá-los.
A construção como bailarina se deu de maneira natural e despretensiosa. Até porque, conta rindo, não queria ser. A dança não era uma realidade para a pequena Ingrid, que adorava brincar de queimada, correr, marcando as pernas com uma coleção de ralados. Seu coração batia mesmo pela natação e, por um tempo, dividiu-se entre as duas atividades. Com os esportes desenvolveu muitas habilidades, principalmente a de se desafiar. Assim, certo dia perguntou-se: “Por que não só o balé?”.
A iniciação na dança foi no projeto social Dançando Para Não Dançar, coordenado por Thereza Aguilar, na Vila Olímpica da Mangueira. Fundado há 20 anos, o DPND atendia 2 mil jovens com aulas de dança, línguas estrangeiras e assistências odontológicas e psicológicas. Foi lá que, além do balé, Ingrid aprendeu Espanhol – mal sabia que dali a uns anos iria conviver cotidianamente com os idiomas mais variados.
Disciplina, determinação, foco e garra. A busca incessante por performar o seu melhor e ser mais qualificada não só a caracterizavam, como também justificam o porquê dela assistir ao mesmo espetáculo diversas vezes. Quando era coordenadora de um projeto de balé para crianças, Ingrid as acompanhava. Muito atenta, sempre comentava sobre algum elemento novo que havia lhe instigado. “Esse período foi ótimo para o desenvolvimento dela”, avalia Aguilar.
O Dançando Para Não Dançar, no entanto, não funciona como antes. Por meio da Lei Rouanet, o projeto recebia patrocínio da Petrobras. Em 2016, a verba foi cortada e hoje o número de alunos foi reduzido a 150. Ingrid ressalta que a perda é grande e atinge toda a sociedade. “Imagina, deve ter muitos outros talentos como eu e que talvez não consigam chegar lá porque não tem apoio. É um desperdício de talento”.
Nos 18 anos que viveu no Brasil, Ingrid também atuou nas companhias Centro de Movimento Débora Colker, no Theatro Municipal e também no Grupo Corpo, em BH. A mudança de estado, a princípio, a deixou nervosa: “Eu não tinha a dimensão que era tão talentosa”. Em contraponto, as pessoas que a mentoravam, bem como sua família, entenderam que esse era um ponto fraco dela e a estimulavam a compreender sua potência e competência para dança. Todo esse encorajamento serviu para fortalecê-la para o futuro.
Em 2007, participou de uma audição para o Dance Theatre of Harlem, por intermédio de Bethânia Gomes, primeira-bailarina na companhia que, ao vê-la em uma aula, encantou-se com seu trabalho e sugeriu que ela enviasse um vídeo para companhia. Ingrid foi aprovada e seguiu para Nova York, onde participou de um curso de verão. Já no ano seguinte, embarcou para atuar na DTH em definitivo.
Sua sala em NY era o extremo oposto daqui, ao chegar lá, percebeu que havia muito mais pessoas parecidas com a sua cor. Nesse momento que ela despertou para a falta de diversidade no Brasil. “Foi aí que eu percebi que não temos diversidade em diversas áreas. Precisamos progredir muito mais. Entrei na sala e vi que tinha muito mais pessoas parecidas comigo do que de onde eu vim”.
Criada pelo prestigiado bailarino Arthur Mitchell, primeiro-bailarino afro-americano a dançar em uma companhia clássica, o New York City Ballet, a Dance Theatre of Harlem é a mais importante companhia de balé clássico do mundo com foco em diversidade. Há 50 anos, a DTH é pioneira em celebrar a cultura afro-americana através da dança.
NO COSMOPOLITISMO DE NY
Antes de ir para a DTH, Ingrid nunca tinha ouvido o nome de Mitchell. A convivência entre os dois mostrou-se enriquecedora em todos os aspectos. Muito exigente e específico, ele sempre falava em excelência, relembra. A companhia foi a precursora em instituir como uniforme pintar as sapatilhas do tom correspondente à pele.
Há pouco mais de três semanas, Ingrid comemorou em uma rede social que, após 11 anos nesse processo, finalmente o mercado compreendeu que “sapatilha cor de pele rosa” não atende à diversidade de bailarinos no mundo. Que bailarinos são múltiplos e variados e não contemplam unicamente o padrão branco e europeu. Ingrid destaca quanto o ato era empoderador, inclusivo e revolucionário. “As próximas gerações não passarão por isso”, diz com alegria.
ELAS CHEGARAM!!!
— Ingrid silva (@ingridsilva) 2 de novembro de 2019
Pelos últimos 11 anos, eu sempre pintei a minha sapatilha. E finalmente não vou ter mais que fazer isso!
FINALMENTE🙌🏽🔥
E uma sensação de dever cumprido, de revolução feita, viva a diversidade no mundo da dança. E que avanço viu demoro mas chego! pic.twitter.com/1KcDMyFKsc
Nos comentários do post, os internautas celebraram a conquista junto com Ingrid. É também nesses momentos que ela vê a importância de sua figura para o balé e o quanto isso inspira as pessoas. Se Mitchell costumava dizer que os bailarinos do DTH representavam algo muito além deles, Ingrid nota como uma bailarina clássica negra é revolucionário.
Não é só no palco que a revolução acontece. Há dois anos, entre ensaios e apresentações, Ingrid dedica-se ao EmpowHer New York, plataforma criada por ela com o intuito de conectar mulheres de todo o mundo. “É uma rede de apoio e networking para mulheres, para que elas se conhecem e cresçam e se fortaleçam”. Em média, 100 a 200 pessoas participam dos encontros presenciais, e outras 7 mil nas redes sociais. Seu sonho é trazer para o Brasil, país com alta taxa de feminicídio.