“Na próxima vez, a gente vai derrubar esse muro todo”; mulheres relatam violações de policiais durante megaoperação no Alemão

Acompanhados de Rene Silva, Defensoria Pública do Estado, Comissões de Direitos Humanos e Mandatos de Vereadores coletaram relatos de mulheres do Complexo do Alemão após megaoperação
Foto: Uendell Vinicius / Voz das Comunidades

Você se lembra de Dona Irís? Moradora há mais de 50 anos no Complexo do Alemão, Dona Íris é dona da casa que ganhou as manchetes dos jornais, com a sua casa se tornando a grande cicatriz da megaoperação na favela da Zona Norte do Rio de Janeiro no último dia 24 de janeiro. Localizada na região conhecida como Chuveirinho, a casa de Dona Íris, assim como a de seus vizinhos, foram alvo de muitos tiros durante a operação policial. 

O Voz das Comunidades esteve na casa de Dona Íris no mesmo dia da operação policial. Mas retornarmos aqui não apenas para fazer mais registros de sua casa ou coletar um depoimento seu. Ainda angustiada pelo ocorrido, ela reabriu sua casa (com obras já em andamento) para receber uma comitiva composta por representantes de diferentes instituições: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e Mandato da Deputada Renata Souza. Guiados pelas organizações periféricas locais como Instituto Papo Reto, Educap, Neem e Voz das Comunidades, a comitiva ouviu não só as palavras de Dona Íris, mas de outras donas de casa da região, que também foram violadas mentalmente pela violência policial.

“Parecia uma guerra em outro país”. A frente da casa de Dona Íris foi destruída durante operação policial no Complexo do Alemão.
Foto: Uendell Vinicius / Voz das Comunidades

“Tenho diabetes, pressão alta e epilepsia. Tomo medicação para isso tudo. Eles chegaram aqui e fizeram de um jeito que se eu passasse mal, ia morrer dentro de casa. Ia morrer dentro de casa com 5 crianças. Estava com as minhas netas gêmeas de nove meses que eu tive que correr com a minha nora.” 

“Meu filho tem 10 anos e desde sexta-feira está sem dormir direito. No sábado, eu levei ele no médico e disseram que ele não tem nada nos ouvidos. Mas ele continua ouvindo tiros, quando não tem nada. No domingo, começou a rolar um papo de operação. Quando cheguei em casa, encontrei ele com a mochila da escola cheia de roupas dizendo que ia para casa do colega dele que fica na Central. E começou a chorar.” 

“Passei o dia inteiro em casa com o meu filho e o meu irmão. Não podia sair de casa, porque fiquei na linha do tiroteio. Minhas paredes, o quarto do meu filho, meu ar condicionado… Tudo com marcas de tiro.  Desde aquele dia, eu perco sono às 3 horas da manhã. Por quê? Porque eu ouço tiros. Eu tenho 41 anos de favela e nunca vi isso. Foi horrível. Foi horrível! Tive a sorte que a minha neta de 2 anos não estava aqui comigo. Se ela estivesse aqui, como que eu iria socorrê-la? Ela só ia saber chorar e eu ia socorrer ela como??” 

No diz respeito ao que ouviram durante a presença de policiais na localidade, os depoimentos se alinham. Como se não bastasse o desespero de se abrigar de disparos o dia todo, as donas de casa relataram ainda ser alvo de deboches dos agentes. “Eles ainda debocham da gente. Eles falam ‘Vai lá. Fala pros bandidos pra arrumar a tua casa’. Bem assim! Como se a gente fosse conivente com o que acontece na favela. Mandam a gente calar a boca”. Os relatos continuam. “Teve um que falou assim ‘na próxima vez, a gente vai derrubar esse muro todo’. E a gente tem que ficar quieta porque a gente tá com medo de tudo que está acontecendo. 

“Ninguém tinha câmera” 

Questionadas se caso haviam reparado que os policiais tinham câmeras acopladas em seus uniformes, as mulheres do Complexo do Alemão afirmaram que nenhum agente usava câmeras. Segundo relatos, alguns utilizavam o celular no colete. O uso das câmeras nos uniformes foi uma determinação do Superior Tribunal Federal (STF). A ordem partiu em 2023. Em 2024, a Polícia Militar afirmava que não faltavam câmeras nos batalhões da guarnição, inclusive unidades de Operações Especiais. Mas na realidade, não é isso que acontece. 

“Meu portão tem mais de 100 tiros” 

Nos relatos ouvidos pela comitiva formada pela Defensoria Pública, Comissão de Direitos Humanos, Mandato da Deputada Renata Souza e organizações locais, afirmaram que além da ausência de câmeras nos uniformes, os policiais utilizaram drones com granadas. Mesmo com a negativa de que as forças policiais utilizassem drones em operações policiais, os depoimentos colhidos afirmaram que a guarnição que atuou na região durante a operação policial utilizava drones, granadas e bloqueadores de sinal do celular. “Totalmente sem internet. Não tinha nem sinal. Não tinha como pedir ajuda ou fala com alguém. Ficamos presos em casa”, relatou uma das moradoras. Outra complementou. “Meu marido tinha achado que eu tinha morrido, porque ele tentava me ligar e a ligação não completava.”

Uma das moradoras presente relatou como foram os momentos durante a operação policial. “Meu portão tem mais de 100 tiros. Só estava eu e me meu filho, de 4 anos, em casa quando chegaram aqui. Eu e ele ficamos escondidos embaixo da cama dele. Ele queria sair pra ir no banheiro e eu não deixei. Falei pra ele fazer num potinho de brinquedo que estava embaixo da cama. Meu filho ficou de 9 horas da manhã até 5 da tarde embaixo da cama. Ele só levantou quando o pai dele chegou em casa”. Outros relatos se juntaram. “Não tinha como se levantar. Não tinha como tomar uma água. Não tinha como ir no banheiro. Não tinha como fazer nada. Era só tiro e rezar muito para que tudo aquilo passasse.” 

“Segurança pra quem?”

Um dos relatos que mais impressionou foi quando as moradoras relataram que durante a limpeza da região, encontraram uma granada sem o pino de segurança. “Agora está limpo porque nos juntamos pra arrumar tudo, mas quando eles foram embora, tudo isso aqui estava tudo destruído. E no meio de toda a destruição, eles deixaram uma granada já sem o pino. Não passa pela cabeça deles que ali pode passar uma criança e pisar. Eles fizeram isso de má fé. Até quando a gente viver num país assim?! Eu não tenho condições disso”, questionou a moradora que complementou dizendo que seu filho quer ser jogador de futebol para tirá-la da favela. “Só que eu sei que até ele se formar, serão muitos tiros que nós vamos passar aqui no Complexo do Alemão.”

Entidades se pronunciaram após reunião com moradoras do Complexo do Alemão

Após os relatos ouvidos e coletados, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro irá elaborar um relatório que será apresentado a setores do governo. “Não que a gente não soubesse que isso acontece em uma operação policial. Eu venho de uma favela da Baixada Fluminense então esses relatos não são novos pra mim. O que me surpreende no sentido negativo, digamos assim, é que a gente veio aqui em 2019, 2022 e agora em 2025 pra ouvir relatos e mais uma vez constatar mais episódios de violência. Aumentaram”, alertou Fabiana Silva, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Ela afirma que, anteriormente, questões relacionadas a tiros e a procura de moradores por abrigos era algo recorrente. Entretanto, hoje, o que chamou a atenção da ouvidora foi relacionado à saúde mental das mulheres de favela, em maioria, mulheres pretas. “Deu pra perceber o quanto essa recorrência de operações policiais estão afetando mentalmente essas mulheres. É nítido. Ainda mais naquelas que cuidam de crianças. Elas são mães, são tias, são avós. E passar por episódios como esse são extremamente traumatizantes.”

Foto: Uendell Vinicius / Voz das Comunidades

Para João Luiz, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, “Usam o termo ‘enxugar gelo’ para para definir operação policial. Eu prefiro usar ‘derramamento de sangue’ o que é sempre feito nessas operações. Sempre que elas acontecem, há um modus operandi da polícia. É um rastro de sangue deixado nas comunidades. Que sangue é esse? É o sangue preto, favelado. É o sangue de pessoas que não tiveram acesso à educação de qualidade, a serviço público de qualidade. E isso, essa violência é produzida pelo próprio Estado”, afirmou. João esclarece que ele, enquanto Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Janeiro, vai até os moradores e mostrar uma outra face do Estado para as pessoas de periferia. “Viemos dizer que o Estado não pode ser só tiro, porrada e bomba. O Estado tem que garantir direitos e cidadania para os moradores de comunidade. A gente veio fazer um acolhimento e ouvir coisas que já sabíamos e reforçar os caminhos que essas mulheres possam percorrer para acessar algum tipo de ajuda, principalmente em relação à saúde mental”. Por fim, João chama a atenção para as crianças das favelas que por conta das operações policiais. “Eles não tem infância! Uma das falas que ouvimos foi uma mãe relatando que o filho dela quer ser jogador de futebol não pelo prazer de jogar futebol, mas sim pra tirar a mãe da favela que é tão impactada pela segurança pública do Rio de Janeiro.”

Foto: Uendell Vinicius / Voz das Comunidades

Joelma Souza, assessora parlamentar da Deputada Renata Souza, ressaltou a importância do acompanhamento de famílias afetadas pelas operações policiais e falou sobre a necessidade de reforçar a narrativa de operações policiais não são eficazes. “As operações representam uma série de fracassos. Fracassos, no caso, na violação dessas famílias no que diz respeito a bens patrimoniais, tiros ouvidos, na forma que afeta psicologicamente, principalmente no rompimento de laços afetivos dentro da favela. Para nós, moradores de favelas, parece que para ser reconhecido como cidadã, pra ter dignidade… Eu preciso sair da comunidade. E eu não preciso disso. Não é assim que avançamos enquanto sociedade.” Joelma diz que, como servidora do poder público, é inaceitável que uma mulher negra tenha ficado presa dentro do banheiro com 4 crianças por 2 horas por conta de operação policial. “Isso é absurdo! Não pode ser normal. Não é normal chegarmos a um local onde todas as casas foram alvejadas. É inadmissível que um agente da segurança pública fale ‘sorte que não morreu ninguém’ com moradores acuados, com medo, dentro de suas casas”.

Foto: Uendell Vinicius / Voz das Comunidades

Questionada sobre o uso de câmeras por policiais do CORE, a Polícia Militar não respondeu ano nosso contato.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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