Residências terapêuticas do Vidigal oferecem reabilitação e dignidade para pessoas com transtornos mentais

Com cuidadores disponíveis 24 horas, o objetivo das casas é promover a autonomia e assegurar um tratamento humanizado
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Derci Pereira da Silva, a moradora mais antiga da Casa Terapêutica do Vidigal, passou 17 anos internada na Clínica da Gávea, onde enfrentou um tratamento desumano. Em 2013, com a chegada da reforma psiquiátrica no Rio de Janeiro e a implementação das residências terapêuticas, sua vida tomou um novo rumo. A desocupação dos manicômios e hospitais psiquiátricos deu lugar a essas casas, oferecendo uma alternativa para pacientes com transtornos mentais. Foi nesse novo contexto que Derci reconquistou sua individualidade e sua voz. Hoje, ela realiza atividades cotidianas, como pintar as unhas, interagir com os outros, namorar e ir aos shows de Sidney Magal.

As residências terapêuticas, oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), são moradias destinadas a pessoas com transtornos mentais, incluindo aquelas que foram liberadas de internações psiquiátricas, mas não possuem apoio financeiro, social ou familiar suficiente para reintegração à sociedade. Essas residências representam uma forma de reparar, ou mesmo de compensar, aqueles que passaram décadas em hospitais psiquiátricos, isolados do contato com a sociedade e o mundo exterior.

A antiga Casa Terapêutica da Rocinha funciona atualmente na comunidade do Vidigal. As duas residências dividem o mesmo quintal, e cada uma abriga seis moradores com faixa etária avançada, todos provenientes de manicômios e hospitais psiquiátricos. Para oferecer um tratamento individualizado, a equipe multidisciplinar é composta por cuidadores de saúde mental, responsáveis pela gestão das tarefas diárias dos moradores e da casa, além de técnicos de enfermagem, nutricionistas, psicólogos e psiquiatras.

A Residência Terapêutica da Rocinha foi inaugurada há 10 anos, enquanto a do Vidigal existe há 2. Ambas são administradas pelo CAPS Maria do Socorro III da Rocinha. A parceria entre a residência terapêutica e o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) possibilita um cuidado integral para cada morador, focando tanto na saúde física quanto na mental, por meio de acompanhamento contínuo. O objetivo é promover o desenvolvimento social e psicológico dos residentes, preparando-os para a convivência nas casas.

O CAPS da Rocinha, nomeado Maria do Socorro III, recebe esse nome em homenagem a uma mulher nordestina, negra e defensora da luta antimanicomial, e que também era pintora. A unidade oferece leitos para acolhimento noturno e atende usuários de diversas regiões, incluindo Ipanema, Gávea, Lagoa, Vila Canoas e todas as comunidades ao redor, abrangendo um território de cerca de 400 mil pessoas. De acordo com a direção da unidade, atualmente, 700 pacientes são regularmente acompanhados pelo serviço.

Relação com a comunidade

Os moradores das residências terapêuticas têm autonomia para gastar seu dinheiro conforme desejarem, seja em viagens, penteadeiras, shows, idas à praia, aulas de dança, cortes de cabelo, compras de roupas, ou até mesmo em cigarros e bebidas. Eles começam a gerenciar sua vida financeira indo ao banco, conferindo o saldo e retirando extratos. Para facilitar o processo, muitos comerciantes fornecem recibos aos pacientes, desde que as compras sejam acompanhadas de nota fiscal para prestação de contas.

Além disso, um serviço que tem feito a diferença são os táxis que sobem o morro. A maioria dos motoristas demonstra paciência e apoio, ajudando os moradores com dificuldades de locomoção e oferecendo o cuidado necessário durante o transporte.

Um caso que se destaca é o de Erildo, um morador da residência terapêutica que ficou internado por 10 anos na Colônia Juliano Moreira. Ele conseguiu recuperar o vínculo com a família e foi reintegrado à sua rotina. “Achamos a família dele no Espírito Santo, ele estava desaparecido há 20 anos”, conta o diretor Thiago Santos. A coordenadora das Casas Terapêuticas, Ana Carolina, complementa: “Na mesma semana em que a família soube dele, fizeram os preparativos para trazê-lo de volta. A mãe disse que sempre soube que ele estava vivo”. E assim se deu o reencontro de Erildo com sua família.

Luta antimanicomial

A Portaria de 1990 foi um marco inicial da Reforma Psiquiátrica no Brasil, estabelecendo diretrizes para a desinstitucionalização dos pacientes com transtornos mentais e a criação de uma rede de serviços de saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS). Ela incentivou o fechamento gradual dos manicômios e hospícios, promovendo cuidados mais humanizados e integrados à comunidade, através de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e as residências terapêuticas. Essa portaria preparou o caminho para a Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001, que consolidou essas mudanças.

Além da criação das Casas Terapêuticas, o Ministério da Saúde oferece um auxílio financeiro dentro do programa De Volta para Casa, como forma de indenização para pessoas com transtornos mentais que permaneceram por longos períodos em hospitais psiquiátricos e de custódia. O valor desse benefício foi reajustado para R$ 755, o que representa um aumento de 51% em relação ao valor anterior.

Além disso, a Prefeitura do Rio paga o Bolsa Rio, um benefício de dois salários mínimos mensais para pacientes que retornam ao convívio familiar, e um salário mínimo para aqueles que ingressam em serviços residenciais terapêuticos.

Essas instituições tratavam os pacientes através do isolamento e da internação prolongada. Segundo a direção do CAPS Maria do Socorro III, alimentava-se a ideia de que pessoas com transtornos psiquiátricos graves não poderiam viver em sociedade, sendo vistas como perigosas e, portanto, precisando de confinamento. No entanto, o que se percebe é que, na prática, a maioria dessas pessoas não oferece risco algum à sociedade.

Tiago Ferreira Santos, diretor do CAPS da Rocinha, afirma: “Hospitais de longa permanência acabam levando à cronificação dos casos, impedindo a pessoa de se expressar e, com isso, agravando sua condição.”

Na fala da coordenadora da Casa Terapêutica, Ana Carolina, ela explica que o trabalho da equipe envolve, estimular a comunicação por meio de perguntas e incentivar conversas, criando um ambiente de troca e linguagens, os estímulos fazem com que os moradores se expressem mais e aprendam a cantar, ouvir música e interagir com o mundo. Além disso, destaca a importância do planejamento da vida financeira, onde a equipe se dedica a mostrar aos usuários como organizar seus desejos e entender o quanto é necessário investir para concretizá-los.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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