Uma crônica.
Pensei a princípio em fazer um relato sobre a minha passagem por Xerém, mas diante de como tudo se sucedeu acho que seria mais correto dizer que esse é um relato meu e do seu Zé um amigo que encontrei no caminho…
O despertador tocou, enrolei um pouco mais na cama , e lá para o terceiro disparo levantei. Peguei o primeiro ônibus, que passou aqui do lado de casa, o 312 até a Central do Brasil.
– Qual é o ônibus que vai para Xerém?
– É aquele ali depois da guarita policial.
E não foi difícil encontrar, lá estava ele amarelo e azul da linha Trel, como o Luiz tinha me falado. Assim que cheguei já tinha umas cinco senhoras na minha frente na fila, pelas conversas dava para ver que elas estavam indo lá ajudar e levar doações.
Enquanto o ônibus demorava a sair dei uma passadinha na banca e resolvi comprar o jornal do dia ‘O Dia’, que já tinha como notícia de capa o desastre na cidade. Dei algumas foleadas e parei diante do título “R$ 5 mil para cada família”, a matéria dizia que cada família que perdeu tudo na enchente iria ganhar do governo R$ 5 mil para comprar móveis, eletrônicos domésticos e utensílios. Eu fiquei meio que pasma diante da notícia pensando que uma geladeira e um fogão já vai lá uns três mil, imagina ter que comprar todas as outras coisas que uma casa precisa com cinco mil? E o que adianta ter os móveis se não tem casa?
Enquanto a minha mente ia longe nas inúmeras indagações as pessoas iam chegando e o ônibus ia lotando, dava para ver que a maioria era de fora. Não sei se motivados por uma culpa existencial por vaidade ou por amor , pessoas de todos os cantos iam chegando para ajudar as 300 famílias desabrigadas em Xerém.
Na hora de passar pela roleta desejei que o valor da passagem não passasse de cinco reais, afinal o dinheiro tá curto. Mas foi exatamente R$ 6, 30 o valor, eu fiquei pensando o que faz um pai de família com cinco filhos querendo passear no final de semana e visitar o centro do Rio, o CCBB, a praia da zona sul, com uma passagem tão cara assim, num ônibus ferrado sem ar condicionado, e com 1 hora e 20 de viagem num dia sem trânsito.
Enquanto o ônibus sacolejava eu ia segurando o meu cobertor e travesseiro que resolvi doar, não sei se motivada por um culpa, por uma vaidade ou quem sabe pelo amor. Entre cochilos e pensamentos, lá bem depois da saída 101 eu cheguei na praça de Mantiqueira, o ônibus só ia até ali já que todo o resto pela frente estava impossível de andar…
Desci e fui direto me informar onde ficava a Igreja Metodista Wesleyana, já tinha sido informada que está igreja estava recebendo as doações, demorei um pouco para conseguir pronunciar o nome certo da igreja e encontrei, no final percebi que todas as igrejas dá cidade estavam recebendo as doações e servindo de abrigo. Não só as igrejas, como as escolas e as próprias casas dos vizinhos.
Enquanto eu andava pelo enorme terreno da igreja observando a fila para pegar as doações, a distribuição do almoço comunitário e o entrar e sair de gente se escutava muitas histórias pelos corredores. Era a história do pastor 71 que estava cadastrando apenas as famílias da igreja para ganhar o benefício da casa, era gente reclamando da quantidade de pessoas que estavam visitando Xerém como curiosos e oportunistas, e ainda tinha aquelas pessoas que quando te viam com uma câmera na mão paravam para reclamar e dizer que em nenhum momento o governo deu uma alternativa para as famílias que moravam em área de risco.
Mas eu ainda não tinha chegado de fato onde toda a tragédia tinha acontecido. Lá na praça de Mantiqueira peguei uma combe para Xerém, não demorou 10 minutos e a combe parou dizendo que não poderia mais prosseguir, dáli em diante era a pé mesmo. Andei acho que um 20 minutos até que avistei um rio e um monte de casa tombada. Na mesma hora gelei e fiquei paralisada foi nessa hora que eu acabei me esbarrando com o seu Zé.
Uma figura simpática de 64 anos que na verdade se chamava José Vital, mas durante toda a nossa conversa e andança eu o chamei de Zé não sei porquê. Seu José me falou que não tinha problema eu chamar ele de Zé já que toda a vizinhança já era acostumada a errar o seu sobrenome.
– Eai seu Vidal!
– Não falei? Todo mundo por aqui me chama de Vidal, mas é Vital com T.
José nascido em recife, disse que cresceu na rua viu todo tipo de droga, mas nunca se interessou por nenhuma. Me contou que com 14 anos veio com a irmã para o Rio de Janeiro morar em Vigário Geral, depois se mudou para Xerém e há 40 anos mora nessa cidade da Baixada Fluminense.
Quando eu encontrei seu Zé ele estava vestido com roupa de trabalho ajudando os seus vizinhos que tinham perdido tudo. “Hoje me chamaram para trabalhar, mas revolvi tirar o dia para trabalhar para a minha comunidade. Dinheiro é bom , mas tem sua hora”, disse.
Seu Zé tem uma casa encima do morro, do lado de onde desabou, mas por milagre de Deus ou não, sua casa ficou intacta.
– Por que o senhor não muda de lá? Não tem medo?
– Eu não, eu respeito a natureza, não tenho medo dela. Não vou sair da minha casa, todo mundo tem o seu dia de morrer e Deus é quem sabe do meu dia… (Pausa). E eu vou sair da minha casa para onde? Para morar de favor ou num abrigo?
Toda essa conversa se dava enquanto andávamos por toda Xerém tombada, seu Zé me levou na casa dele, na casa do amigo dele José Pereira, 74 anos, na casa da sua filha, me fez atravessar o rio andando, umas quatro horas de caminhada de idas e voltas…
Enquanto andávamos , eu ia tirando foto, ele ia me apresentando para as pessoas e ao mesmo tempo me contando que tinha tido dois filhos, que nenhum tinha dado problema para ele, que não teve mais filho porque educação é caro, que Caxias tava cheia de lixo, que Xerém só tinha um hospital e que só atendia quem queria, me contou que ia processar o hospital, que era sertanejo e só cantava música de raiz que tocava violão de 10 cordas na Folia de Reis de Bonsucesso, me contou sobre a alternativa das casas populares e disse que na opinião dele o novo prefeito tinha ganhado uma bomba pegando a cidade naquele estado de calamidade.
– “Assim eu não tenho nada para falar do novo prefeito não viu? Ele mal começou, agora o Vitor e o Wast… são farinha do mesmo saco”.
Encucada com todo o carinho que ele me deu e como foi prestativo, “ele falava umas coisas tão bonitas..” .
Eu perguntei
– Você acredita em Deus?
– Sim
– Você vai na igreja?
– Não
– Por que?
– Ah, minha filha ! Vou te contar um segredo, eu sou espírita e canto naquele centro bem ali
– Ai, que lindo!
Abracei ele, me despedi e prometi voltar pra ver ele cantando no centro…