OPINIÃO: “Não adianta mas vamos continuar”: da insatisfação ao julgamento moral que mata

 “Adolescente é morto durante tiroteio na Maré” era uma das principais notícias do portal do Uol no dia 6 de Fevereiro de 2018.

Esse tipo de notícia é novidade para você? Imagino que não.

Segundo o portal Fogo Cruzado, em 2017 foram registrados, em média, 16 tiros por arma de fogo por dia na região metropolitana do Rio. Segundo o mesmo portal, só em março de 2017 foram 86 feridos e 65 mortos, entre eles a estudante Maria Eduarda de 13 anos, morta dentro da escola por três balas de fuzil em Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro. Alguns meses depois, em julho de 2017, uma das vítimas foi a Vanessa Vitoria de 10 anos, morta dentro de casa no Complexo do Lins, também na Zona Norte do Rio.

Em conversas com pessoas mais velhas pude notar que notícias como as que iniciaram este artigo são comuns há mais tempo do que deveria ser considerado normal em uma cidade pertencente a uma nação que tem a palavra “progresso” na bandeira.

O motivo de cada operação que gera mortes nas favelas e fora delas nós já conhecemos. Cada reportagem que vemos e ouvimos sobre operações nas favelas diz basicamente a mesma coisa sobre os fatos que motivaram as ações e permanecemos com uma sensação de que estamos “secando o chão debaixo de chuva”. Todo dia, milhões de favelados ouvem na TV frases como “as operações vão continuar” e, após ter mortos e apreensões em meio a horas de tiroteio a gente escuta: “a ação foi bem-sucedida”. É claro que os sentidos de “ação bem-sucedida” são variados e estão relacionados com os objetivos de quem promoveu a ação. Mas estamos falando da colocação de toda uma população favelada em risco a partir de ações que, segundo especialistas, geram a violência ao invés de reduzi-la. Se isso, em qualquer hipótese, é atuar de forma bem-sucedida, imagina se não fosse, não é mesmo?

Te coloco a seguinte situação: você precisa arrumar o seu armário, mas ao posicionar todo o material dentro dele, a estrutura da arrumação não se sustenta e despenca inteira. Caem objetos em cima de você, te machucam e você precisa tentar arrumar tudo outra vez. A cada tentativa de arrumação, mais desorganizado fica o seu armário, mais objetos caem e mais eles te machucam. Você continuaria a arrumar o armário da mesma forma?

É exatamente esse questionamento que precisamos colocar em tudo aquilo que não apresenta resultados desejados. Em outras palavras: é inteligente manter as mesmas ações que conduzem aos mesmos erros?

Seria simples resolver qualquer questão após levantar essa pergunta se não houvesse outros aspectos que se colocassem entre a reflexão e a elaboração de ações alternativas. E no que se refere às guerras do estado do Rio de Janeiro (e outros estados do Brasil), há um tabu na discussão: drogas.

Todo mundo está insatisfeito com a violência. Ninguém gosta de sair de casa e ter risco de não mais voltar. E aí quando vamos propor uma discussão sobre drogas, que são as personagens principais das guerras do nosso dia a dia, o que ocorre? Poucos são os que querem falar sobre e, desses poucos, menos ainda são os que conseguem criar um debate fora do campo do julgamento moral (do que é “certo” e “errado”) sobre o uso de drogas e a sua venda. Isso evita que possamos discutir, até mesmo, o racismo inserido em toda essa questão. Um exemplo simples: traficante. Você pensou em quê? Provavelmente em um homem negro. É que as pessoas brancas que atuam nesse mercado não sofrem as consequências sofridas por quem é preto, inclusive os julgamentos, em especial os da “grande mídia”. E sobre uso, a diferenciação feita entre usuários de drogas brancos e negros daria tema para outro artigo. Essas são só algumas das faces da discussão.

As drogas poderiam ser debatidas exclusivamente na saúde pública, na educação e na cultura. Mas por conta de políticas e leis que vigoram no país há anos (como a Lei nº 11. 343, de 2006, popularmente conhecida como Lei de Drogas), é um debate majoritariamente do campo da segurança pública e as outras formas de conduzi-lo ficam em segundo plano.

Enquanto a gente não debater sobre esse tema a partir de um julgamento que não seja repleto de moralismo, não vamos discutir ações diferentes das que já vêm sendo feitas para “combate à violência”. E o favelado precisa estar no centro dos debates que visam reduzir a violência nas próprias favelas, como vem fazendo o coletivo Movimentos. Coloco de novo na questão a inteligência e estratégia de ação: não se alteram os resultados se não ocorre mudança da forma de atuação. Se insistir em um erro por horas arrumando o armário da forma errada é, no mínimo, perda de tempo, imagina insistir em um erro por anos. Essa situação se agrava quando adicionamos o detalhe de que é dinheiro que se gasta e são vidas que se perdem. Se a conversa sobre o assunto não mudar de foco, corre o risco de que amanhã exista mais uma criança morta como resultado de uma guerra inventada.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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