“(\u2026) o capitalismo me obrigou a ser bem sucedido”. Esse \u00e9 um dos versos da letra ‘A Vida \u00e9 um Desafio’, do grupo Racionais MC ‘s. Escuto essa m\u00fasica desde quando eu morava no Cap\u00e3o Redondo, favela no extremo sul de S\u00e3o Paulo. Era adolescente.<\/p>\n\n\n\n
Ficava eu, meus amigos da rua e meus primos, todos negros, soltando pipa e passando a discografia Nada como um ‘Dia ap\u00f3s o Outro Dia’. Na \u00e9poca, nem eu nem eles sab\u00edamos o significado da frase, mas t\u00ednhamos consci\u00eancia de que era importante saber.<\/p>\n\n\n\n
Quem \u00e9 preto, oriundo de favela, como eu, sabe que a vida, em verdade, \u00e9 um grande desafio. Crescemos isolados do restante da cidade, sem dinheiro, carente de acessos, como sa\u00fade, moradia digna, saneamento b\u00e1sico e melhor qualidade de vida.<\/p>\n\n\n\n
Soltar pipa era uma das poucas formas de lazer que n\u00f3s, crian\u00e7as de favela, t\u00ednhamos. Porque, diferente dos brancos que moravam em apartamentos pr\u00f3ximos, \u00e1rea de lazer era a que a gente criava. Lembro quando minha m\u00e3e comprou uma televis\u00e3o nova. Nossa! Tornou-se a atra\u00e7\u00e3o principal da casa. Nela, assist\u00edamos novela, filmes, programas de entretenimento\u2026mas lembro que eu falava para minha m\u00e3e que n\u00e3o via ningu\u00e9m parecido comigo, com ela, tampouco com o meu pai.<\/p>\n\n\n\n
Os personagens, em sua maioria, eram brancos. Se fossem pretos, o papel que ocupavam eram sempre os mesmos: empregada, seguran\u00e7a, pessoas que falavam “errado”\u2026 e o mais frequente: marginal. Nos notici\u00e1rios que ela me ensinava a assistir, a cor da pele das pessoas que eram conduzidas para a delegacia era a mesma quase sempre. Ent\u00e3o, a orienta\u00e7\u00e3o que ela dava era de focar nos estudos, para n\u00e3o se tornar um deles.<\/p>\n\n\n\n
O tempo foi passando. Fui conhecendo o mundo para al\u00e9m dos muros da favela. Comecei a perceber que o mundo estava avan\u00e7ando. Pessoas pretas foram tendo mais lugares de destaque. Estavam mais inseridas nas novelas, com outros pap\u00e9is, nos filmes, nos telejornais, nas revistas.<\/p>\n\n\n\n
Com as redes sociais comecei a acompanhar pessoas que, sem essa democratiza\u00e7\u00e3o \u00e0 informa\u00e7\u00e3o, eu n\u00e3o teria acesso. Assim foi poss\u00edvel enxergar novas refer\u00eancias, n\u00e3o brancas, que aos poucos foram me mudando e fazendo compreender o meu lugar na sociedade enquanto homem negro, vindo de favela, inclusive resgatar aqueles que fizeram parte da minha constru\u00e7\u00e3o social, pol\u00edtica e cr\u00edtica, como o pr\u00f3prio Racionais e Sabotage.<\/p>\n\n\n\n
A partir das lutas travadas pelo Movimento Negro, as favelas e periferias come\u00e7aram a ser olhadas com outros olhos. N\u00e3o por iniciativa efetivamente de quem mirava torto para esses espa\u00e7os, mas dos pr\u00f3prios moradores, que se lan\u00e7aram como cantores, compositores, atores e atrizes, pol\u00edticos, empres\u00e1rios, Youtubers e at\u00e9 influenciadores.<\/p>\n\n\n\n
A internet trouxe visibilidade para os seus trabalhos. Com isso, obviamente, o capitalismo viu a oportunidade perfeita de obter mais lucro com eles, j\u00e1 que todos, inclusive os brancos ricos, passaram a consumi-los tamb\u00e9m. Desta maneira passaram a ser mais “aceitos”. Pretos, ent\u00e3o, come\u00e7aram a fazer dinheiro como nunca visto antes. Pretos se empoderaram.<\/p>\n\n\n\n
Come\u00e7aram a frequentar lugares que antes s\u00f3 passavam em frente. Da capa de revista para os tel\u00f5es da Time Square, tudo come\u00e7ou a “escurecer”. Logo, o discurso “Pretos no topo”, fazendo refer\u00eancia a ascens\u00e3o negra, come\u00e7ou a cair na boca do povo, assim como “a favela venceu”.<\/p>\n\n\n\n
Isso nada mais \u00e9 do que mera armadilha da representatividade. O capitalismo tem a capacidade de corromper pensamentos e ideais, criando arapucas que at\u00e9 o mais “prevenido” cai. Projeta-se que todos s\u00e3o capazes de chegar num determinado lugar, basta se esfor\u00e7ar, como nos conta a l\u00f3gica da meritocracia. Isso nunca foi verdade.<\/p>\n\n\n\n
Se existe um topo, existe tamb\u00e9m quem esteja sustentando essa base. E quem est\u00e1 na base sen\u00e3o ainda os pretos, empobrecidos e favelados? Pretos devem ter dinheiro, a quest\u00e3o n\u00e3o \u00e9 essa. Mas a representatividade efetivamente n\u00e3o combate o racismo, a desigualdade, tampouco alimenta quem est\u00e1 com fome.<\/p>\n\n\n\n
O Brasil segue sendo um dos pa\u00edses mais desiguais do mundo. A favela ainda carece de muitos dos direitos que est\u00e3o na Constitui\u00e7\u00e3o. L\u00e1 falta \u00e1gua, tem esgoto a c\u00e9u aberto, a pol\u00edcia promove chacina, n\u00e3o tem emprego e o governo n\u00e3o d\u00e1 assist\u00eancia para matar a fome de quem precisa.<\/p>\n\n\n\n
Essa \u00e9 a base que sustenta os “pretos no topo” e os brancos que nunca sa\u00edram de l\u00e1. Enquanto a comunidade negra brasileira n\u00e3o se enxergar como um todo, as conquistas individuais ser\u00e3o mais importantes que a coletiva. Logo, continuaremos da maneira como est\u00e1.<\/p>\n\n\n\n
Interpretando a antrop\u00f3loga L\u00e9lia Gonzalez, temos que nos voltar para dentro das favelas e nos organizarmos melhor no sentido de dar assist\u00eancia para esses que est\u00e3o, que v\u00e3o chegar, para continuarmos a nossa luta.<\/p>\n\n\n\n
Jonas di Andrade PerifaConnection<\/strong>, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, \u00e9 feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo<\/strong><\/p>\n\n\n\n <\/p>\n","editor":"PerifaConnection","categoryTitle":"Conex\u00f5es"}
<\/strong>Ativista social, membro do coletivo Alian\u00e7a Antirracista, professor de portugu\u00eas, literatura e reda\u00e7\u00e3o pela UFRJ, educador popular, escritor, revisor e assistente de jornalismo do Voz das Comunidades<\/p>\n\n\n\n