Conheçam jovens artistas que reproduzem seus olhares e vivencias de favela através da arte

Bruna Gomes, Fael e Nobru, embora nascidos em lugares diferentes Rio de Janeiro, têm em comum a arte como ferramenta de expressão, resistência e denúncia
Arte: Tamires Aragão

Da janela da sala, DABG vê a Igreja da Penha, o Campo da Ordem, a Igreja de Nossa Senhora de Aparecida e várias circulações da Vila do Cruzeiro. Essas paisagens e movimentos se tornam inspirações para uma arte que exerce com sentimento, pertencimento e excelência. Cria do Complexo da Penha, a artista de 26 anos descreve a favela como “berço das artes visuais”.  

Desde criança, Bruna queria ser artista. Entre as correrias da vida, ela se reencontrou com a arte em movimentos socioculturais na favela. Suas obras retratam o cotidiano de um morro cheio de história para contar: sejam sobre violência policial, ancestralidade ou memória.  

A real é que a DABG valoriza o impacto das questões que a favela vivencia. Para além do que aparece na TV, existem sentidos e experiências que trazem uma identidade artística única.  

“Cultura não é só que a gente vê na televisão ou obras de arte do passado. Cultura envolve nosso cotidiano e toda nossa vivência da vizinha que tá ouvindo um louvor até questões de lixo na rua. E a forma de me comunicar e de questionar essas coisas é a partir da minha linguagem nas artes visuais. A minha visão parte daqui e meu trabalho também. Tenho que considerar as coisas que acontecem nesse lugar porque são as primeiras coisas que me impactam. É minha primeira experiência de vida. Aqui eu estou em contato com o coletivo, comigo e as outras pessoas. E a arte nasce da coletividade”, explica DABG.   

Bruna Gomes tem 26 anos e é cria da Vila Cruzeiro – Foto: Uendell Vinícius / Voz das Comunidades 

Agora uma das metas de Bruna é levar seu trabalho para a rua. Óbvio que este movimento não seria feito de forma individual. Por isso, ela idealizou o RefDelas, um mutirão de Graffiti de referências femininas produzido por mulheres. A primeira edição aconteceu em março deste ano e foi imensamente abraçada pela Vila Cruzeiro. Bruna acredita que a falta de manifestações artísticas no CPX da Penha faz com que as pessoas se animem mais quando veem ações como essa.  

“Nunca existiu um mutirão de graffiti aqui. Comecei a observar o território e percebi que quase não tinha pintura e quando existiam eram de figuras masculinas sobre luto ou de jogadores de futebol. Senti a ausência da representação feminina e quis trazer essas imagens positivas para cá. Uma das coisas que vejo da minha janela desde criança, e que me causa muita angústia, é violência contra mulher. Então uni dois questionamentos: não ter representação artísticas e ter esses acontecimentos. Não vai mudar de um dia para o outro, mas vai trazer uma nova perspectiva para as crianças que viram só mulheres pintando e tal. Eu não quero mudar o mundo, mas quero pelo menos mudar minha rua”, explica DABG. 

Foto: Uendell Vinícius / Voz das Comunidades 

Tem rua que é marcante na vida das pessoas mesmo. O artista Fael é um exemplo disso. Com 22 anos, ele é cria de Senador Camará e mora na mesma rua desde sempre, apesar de já ter mudado de casa. A arte funciona como uma ferramenta de denúncia de desigualdades sociais e violências que jovens negros sofrem. Tendo este perfil, Fael já teve perdas na família por conta da brutalidade policial e utiliza os pincéis e o graffiti como forma de gritar. 

“A arte sempre esteve comigo”, é o que ele diz quando perguntado sobre quando se tornou artista. A criatividade e habilidade com cores de fato sempre esteve em suas mãos. Na adolescência, ele era famoso em grupos do Facebook por fazer ilustrações para divulgação de trabalhos específicos. Foi assim que começou a lucrar com a arte. O incentivo da família e da esposa Suzi sempre foi fundamental. Tanto é que Fael não se prende aos quadros: além de artista plástico, ele é poeta, MC, trabalha com moda e é arte-educador.  
 
Ao andar pelas ruas de Camará, ele é reconhecido. O contato com escolas da região faz com que pais e crianças se identifiquem com seu trabalho e se interessem pela arte também. O trabalho de Fael é com um espelho. Para ele, é natural pintar pessoas negras. A correria, o estilo e a estética são retratadas com maestria de quem olha para si e para o outro com respeito e carinho.  

Fael tem como objetivo implementar um espaço de arte e cultura em Senador Camará – Foto: Amabilly Vitória 

“Nunca gostei de injustiça. Sempre fui o menó da sala que discutia com o professor ou alguém que estivesse falando besteira. Como gosto de expor a realidade, entendo que a arte é minha forma de gritar. Grito com aquilo que sei que pode chamar atenção: com a música, com arte, com poesia. A gente vive tanto os amores quanto as dores da favela. Só de expor isso já é um ato político. Quando eu faço um menó tomando tiro da polícia não é porque eu gosto daquilo. É porque acontece todo dia. Será que isso tá certo?”, questiona Fael. 

O movimento de jovens negros que utilizam a arte para denunciar violações e enaltecer a sagacidade de ser cria é chamada de crialismo, termo fincado por Allencar, artista plástico de São Gonçalo. O sufixo -ismo faz referência a outros movimentos artísticos como surrealismo e expressionismo. A criatividade é a resposta da favela para um Estado tão empenhado em exterminar sonhos e trajetórias negras. 

“O crialismo é retratar o que é ser cria, tanto dentro da arte, da dança, da música. Se você é cria e você faz arte, você é crialista. A gente é um movimento e a gente faz acontecer. Com certeza já está marcado na história da arte. É algo muito grande e muito firme. Eu só vou me sentir em paz quando eu conseguir trazer tudo aquilo que eu almejo para Camará: arte, educação e cultura. Eu não quero subir sozinho, eu quero trazer os meus comigo. Pra mim não faz sentido chegar sozinho se eu não falo só sobre a minha história. Eu falo da história de muita gente. Eu falo da história de todo favelado”, explica Fael. 

Há quem permanece no mesmo lugar e quem transita por outros para reconstruir a própria trajetória. NoBru Werneck, de 30 anos, é cria do Laboriaux, parte mais alta da Rocinha. Há dez anos, ele e sua família foram removidos por conta de um deslizamento de terra próximo a residência onde moravam. Desde então, ele reside em Pedra de Guaratiba, zona oeste do Rio. A relação de NoBru com a arte começou no graffiti e foi transitando por diferentes lugares até conseguir encontrar sua linguagem. 

A arte de NoBru vem de dentro para fora. Sua observação sobre o espaço e suas próprias experiências resultam em cores e expressões que traduzem seu espírito livre e seu olhar atento. O gosto pela pesquisa constrói séries com narrativas inovadoras que trazem o concreto e lúdico de forma única. A coleção “A sombra é para todos” traz perspectivas sobre pertencimento, lazer e reivindicação de espaço. A série chegou a Paris em uma exposição marcada por encontros e conquistas.  

Próxima série de NoBru Werneck exalta suas descobertas e conexão com Pedra de Guaratiba – Foto: Fabrício Sousa 

“Sendo pobre e crescendo em uma favela da zona sul, a gente lida com a desigualdade social de perto. A gente desce para São Conrado e a já lida ali com racismo e com toda questão elitista que é morar do lado de um bairro da zona sul. Eu sempre sentia isso: estou num lugar, mas não pertenço ao lugar; então vou ficar de cantinho para não perceberam que eu não pertenço ali. Sempre me senti na sombra. Daí quis brincar com isso. Quantas pessoas pretas vão para praia e curtem a praia sem se sentirem julgadas? Hoje eu vejo A Sombra é para todos’ como uma reivindicação de espaço. Por eu ter perdido minha casa na Rocinha e demorar muito tempo para me sentir pertencente a outro lugar, a ‘Sombra é para todos’ por muito tempo foi minha casa. Queria ter minha própria sombra”, explica NoBru. 

NoBru também diversifica as superfícies pintando em lonas de feira. Para ele, é mais confortável pintar sob um lugar que já é conhecido socialmente. Nessa linha de fazer a arte de abrigo, NoBru soube de ligações ancestrais que conectam as raízes de Pedra de Guaratiba e a Rocinha. Ao longo do processo de pesquisa para uma nova série, ele descobriu que parte da Floresta da Tijuca, que cerca o Laboriaux, foi constituída por árvores de Guaratiba. Sua nova coleção se chama Terra de Guará e traz elementos desse processo de descoberta para com o território que lhe acolheu.   

Foto: Fabrício Sousa 

“Eu vejo muitas semelhanças do Laboriaux com o território que eu sou hoje. Quando eu vim pra Pedra rolou esse choque cultural. Comecei a trazer coisas do meu território para me sentir em casa e, assim, promover a primeira roda de rima daqui colar com a galera do grafite. Eu quero falar daqui porque é um lugar incrível, cheio de história e cheio de cultura. Guará era um pássaro que tinha muito aqui, tanto que os indígenas deram esse nome. Hoje não tem mais por conta da depredação do local. Daí trago esse simbolismo com o guará com pessoas que passaram pela minha vida e não estão mais aqui. Construo todo esse simbolismo com o lugar e com experiências da minha vida”, explica NoBru Werneck. 

Da zona norte à zona sul, a arte segue eternizando verdades sobre territórios e transformando trajetórias.  

Compartilhe este post com seus amigos

Facebook
Twitter
LinkedIn
Telegram
WhatsApp

EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

Contato:
[email protected]